São Paulo, onde a vida é o que acontece dentro de um carro
A cidade é a quarta do mundo com mais congestionamentos. Cada paulistano perde três dias e meio por ano parado no trânsito
“Até que não está tão ruim... Se tudo der certo, em duas horas estamos lá”, observa, temeroso, Silvio, setenta e alguns anos, cabelo branco penteadíssimo para trás e olhos azuis escondidos entre rugas e duas sobrancelhas homéricas. Benze-se e coloca o endereço no navegador do Chevrolet Celta, o carro que um taxista lhe empresta para que tire alguns reais agora que está aposentado. Seus cálculos são bastante generosos. Nos propusemos a percorrer apenas 32,2 quilômetros, mas estão entre os piores de São Paulo, a maior cidade da América e a quarta grande cidade com maiores engarrafamentos do mundo, segundo o estudo que a consultoria especializada em transportes INRIX acaba de publicar.
São os 32 quilômetros que separam nosso ponto de partida, Guarulhos, onde está o único aeroporto internacional do coração financeiro do Brasil, e o centro da cidade. São oito horas da manhã de uma segunda-feira, o pior momento para empreender o trajeto. Silvio parte. Depois de 15 minutos já parou entre centenas de veículos imóveis à esquerda, à direita, e até onde a vista alcança. “Bem, não está tão ruim...”, repete.
Nesse gigante que é São Paulo, 12 milhões de pessoas (20 milhões, incluindo toda a região metropolitana) convivem com um transporte público modesto e vias que não dão vazão a tantos carros. A prefeitura restringe o acesso ao centro em horários de pico (das 7h às 10h e das 17h às 20h) a certos carros em função do número final de sua placa e do dia da semana, em um rodízio que tenta descongestionar as ruas. Mas mesmo assim a INRIX calcula que cada paulistano passou 86 horas de 2017 em algum engarrafamento: três dias e meio de suas vidas parados ao volante, olhando os pedestres e ouvindo as motos que avançam entre as pistas sem parar de buzinar. Não é raro ver um táxi com tomada para carregar o celular, balas em caso de fome e uma pequena televisão para não perder o futebol ou a novela. Se o trânsito é um fenômeno em outros lugares, aqui é um estilo de vida.
Como tal, gerou uma indústria oculta de vendedores ambulantes que passam o dia passeando entre os carros e oferecendo doces e salgadinhos industrializados, chicletes, frutas e carregadores de celular. Alguns até aceitam cartão de crédito. Eliseu, não. Com 45 anos, careca, com um bronzeado invejável no corpo de um metro e setenta e um sorriso ainda mais invejável sob o bigode, é um profissional de uma esquina de Pinheiros, região oeste da cidade, que conecta duas avenidas. Vive de vender panos de prato todo dia. Não precisa ir muito longe, nem de máquina de cartão. “Aqui se juntam muitos carros”, argumenta. Compra os panos perto do bairro do Brás, onde vive com sua mulher e dois filhos, a um real cada um. Depois vende cinco panos a 10 reais, a partir das dez da manhã. “Vendo 110 panos por dia se fico aqui sete horas”, calcula. Consegue tirar até 5.000 reais por mês, mais de cinco vezes o salário mínimo. “Antes era motorista, mas minha mulher queria ser dona de casa e isso paga melhor”, ri.
O trânsito em São Paulo é imenso. Em 2012, a cidade bateu seu recorde com uma lentidão de 295 quilômetros, o equivalente à distância entre o centro da capital e a cidade de Araraquara, no interior do Estado. Mas também é assim em geral, inclusive em momentos em que a metrópole não apresenta seu potencial para o caos. Há um ano, foi emplacado o veículo de número 7 milhões, dos quais, calcula-se, 3,8 milhões circulam diariamente. Muito antes de chegar a esse número, em 2010, o Ibope fez um cálculo pior do que o do INRIX: um paulistano pode perder em média mais de duas horas por dia na fila. A cidade também perde. Com esse tempo em que todo mundo está parado poderiam ser produzidos 27 bilhões de reais (a serem somados com mais de 6 bi que se desperdiça em combustível e outras coisas, segundo dados da Fundação Getulio Vargas). Nas 100 cidades do mundo com piores congestionamentos surgem outras cinco brasileiras: Belém do Pará (em 25º, com 55 horas perdidas por ano), São José, em Santa Catarina (30º, com 52 horas), Rio de Janeiro (31º, com 51 horas), Salvador (50º, com 47 horas) e Recife (82º, com 41 horas).
O Celta foi abrindo caminho em ritmo de tartaruga ao longo da rodovia com um nome, Ayrton Senna, que nessas circunstâncias quase parece cômico. Silvio primeiro recusou cocos de um vendedor, e depois negociou maracujás com outro. Está quieto há um bom tempo. Seus cálculos iniciais foram otimistas: já andamos duas horas e meia, e só agora começamos a nos aproximar do destino. “Todo mundo quer chegar ao mesmo lugar ao mesmo tempo”, reclama. Ao estacionar, olha com desespero para o cartão de crédito. “Esse bar aí... tem banheiro?”, pergunta apressado. Ao ouvir que sim, sai em disparada na medida do possível para um homem de setenta e poucos anos. Afinal, ele passou quase três horas involuntariamente fechado em um carro. Está perceptivelmente aliviado ao sair. “Agora te cobro. Esses congestionamentos... não são vida.”
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