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Temos motivos de sobra para ser otimistas

Corrente de pensamento em alta promove a fé no constante avanço humano

Gravura do século XIX mostra danos causados pelo terremoto de Lisboa em 1755
Gravura do século XIX mostra danos causados pelo terremoto de Lisboa em 1755PRISMA / UIG (GETTY)
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O terremoto de Lisboa, que destruiu a capital portuguesa na manhã de Todos os Santos de 1755, abriu um debate filosófico que ainda não acabou e no qual acabam de entrar o fundador da Microsoft, Bill Gates, e um dos ensaístas norte-americanos mais influentes, Steven Pinker. Aquele cataclismo desafiou os pensadores iluministas do século XVIII, defensores da fé no progresso, com o tremendo problema de tentar explicar o mal, a irracionalidade e a existência de um desastre de tão enormes consequências. Era realmente possível dizer que o mundo estava melhor diante de semelhante catástrofe? O tremor lisboeta não impediu que aqueles iluministas reafirmassem sua confiança de que a humanidade indefectivelmente avança.

Quase três séculos depois, o espírito de um novo Iluminismo, que também não está disposto a questionar o progresso, volta a desempenhar um papel importante. Surgem dilemas semelhantes: devemos nos deixar influenciar pela realidade imediata ou devemos observar movimentos de fundo mais profundos e positivos? Pode um desastre ou um temor a um desastre – por exemplo, os efeitos da mudança climática – nos fazer desistir de nossa confiança no futuro? Pinker, o apóstolo dessa corrente de pensamento positivo, responderia taxativamente que não. Seu ensaio, Enlightenment Now. The Case for Reason, Science, Humanism and Progress (O Iluminismo Hoje. Em Defesa da Razão, da Ciência, do Humanismo e do Progresso), começa a ser vendido em fevereiro nos EUA. A editora precisou adiantar a data após Bill Gates escrever na semana passada que era “o melhor livro” que já leu em sua vida, o que causou as vendas antecipadas.

No capítulo divulgado pela editora Viking pelo blog do fundador da Microsoft e filantropo, Pinker se defende do que chama de “progressofobia”. Em seu livro anterior, Os Anjos Bons da Nossa Natureza: Por Que a Violência Diminuiu, defendia a ideia de que vivemos o momento menos violento da história da humanidade, postura pela qual recebeu elogios categóricos, mas também algumas críticas que o acusavam de excesso de otimismo.

O livro foi publicado durante a crise econômica, quando o nível de vida de muita gente baixou sem aviso. Pinker dizia que era uma questão de perspectiva e que o importante era procurar tendências de fôlego a longo prazo. Mesmo assim, alguns opinaram, acontecimentos como a Segunda Guerra Mundial e a diminuição da expectativa de vida ocorrida na Europa durante as guerras de religião dos séculos XVI e XVII demonstravam que a possibilidade da humanidade regredir era real.

Bill Gates chamou o novo ensaio do professor de Harvard de “o melhor livro” que já leu”

Em seu novo ensaio, Pinker não foge do debate e se aprofunda na mesma ideia, dessa vez tentando definir o que significa avançar e construir um mundo melhor. “O que é o progresso?”, se pergunta esse professor de Psicologia de Harvard, nascido em Montreal há 63 anos. “Vocês podem pensar que é uma questão tão subjetiva e culturalmente relativa que é impossível respondê-la. Pelo contrário, poucas perguntas têm uma resposta tão simples. A maioria das pessoas estará de acordo com o fato de que a vida é melhor do que a morte; a saúde é melhor do que a doença; a alimentação, melhor do que a fome; a paz, melhor do que a guerra; a segurança, melhor do que o perigo; a liberdade, melhor do que a tirania; a igualdade de direitos, melhor do que a discriminação; o conhecimento, melhor do que a ignorância; a inteligência, melhor do que contemplação aborrecida do mundo; a felicidade, melhor do que a miséria; a possibilidade de passar bons momentos com a família, os amigos, a cultura, a natureza, melhor do que um trabalho penoso e monótono. E tudo isso pode ser medido e aumentou ao longo dos anos. Isso é progresso”.

Como não poderia ser de outra forma, no segundo parágrafo do novo livro, Pinker faz referências a Voltaire e afirma que o acusaram de ser um novo Pangloss, o protagonista de Cândido, ou O Otimismo, o romance que o grande filósofo francês do Iluminismo escreveu após o terremoto de Lisboa. Seguidor de Leibniz, Pangloss sempre diz que “vivemos no melhor dos mundos possíveis”, o que poderia soar somente aparentemente contraditório diante da paisagem da capital portuguesa em ruínas. “Voltaire não satirizou o Iluminismo, pelo contrário, criticava a racionalização religiosa do sofrimento, que defendia que Deus não tinha outras opções a não ser permitir epidemias e massacres porque o mundo sem elas era impossível”, escreve Pinker.

Curiosamente, o cataclismo sofrido em Portugal de fato provocou uma mudança profunda, que poderíamos considerar muito iluminista. Como explica Nicholas Shrady em The Last Day. ­Wrath, Ruin and Reason in the Great Lisbon Earthquake of 1755 (O último Dia. Cólera, ruína e razão no grande terremoto de Lisboa de 1755), como acontece agora com os desastres naturais, muitos países ofereceram ajuda, um fenômeno inédito até então na Europa: até esse momento, a ideia era que se um Estado sofresse um desastre de enormes proporções, como o incêndio de Londres de 1666, melhor para seus rivais.

Pinker já explicou em seu primeiro livro a importância da maneira de se enfrentar os desastres para medir o progresso humano. Sua teoria é que um dos grandes avanços da civilização ocorreu quando pela primeira vez um juiz sentenciou que “as coisas acontecem” e, em vez de culpar uma bruxa por uma colheita ruim, simplesmente afirmou que se tratava de má sorte, uma explicação mais sensata do que a tentativa de se procurar intervenções divinas e diabólicas. Os iluministas chegaram a conclusões semelhantes após o terremoto de Lisboa: em seu romance, Voltaire satiriza, além de Pangloss e Cândido, o auto de fé organizado para acalmar uma divindade furiosa, para o qual prendem dois pobres marinheiros que haviam retirado o bacon ao comer um frango.

O tempo que gastamos para lavar a roupa passou de 11,5 horas por semana em 1920 a 1,5 em 2014

Na obra de teatro Voltaire contra Rousseau, um texto de Jean-François Prévand dirigido por José María Flotats que pode ser visto atualmente no teatro María Guerrero de Madri, se explica muito bem a absoluta confiança de Voltaire no avança da humanidade frente à teoria do “bom selvagem” de Rousseau. O autor de Cândido não confiava na natureza, mas na sociedade e em avanços determinados, relacionados à técnica, mas também com as leis, a defesa dos indivíduos e a capacidade para criticar as crenças estabelecidas. Dois séculos e meio depois, o debate é retomado nos tempos da guerra da Síria e dos cataclismos provocados em todo o planeta pelo aquecimento global.

Bill Gates sustenta que a grande originalidade do livro de Pinker é que mede nossos avanços em 15 aspectos, alguns dos quais podem parecer pequenos à primeira vista, mesmo não sendo. Dá cinco exemplos em seu blog: “1. Você tem 37 vezes menos possibilidades de ser atingido por um raio do que no século passado, não porque existam menos tempestades, mas por nossa capacidade de prever o tempo e pela educação. 2. O tempo que gastamos para lavar roupa passou de 11,5 horas por semana em 1920 a 1,5 em 2014. Pode parecer trivial, mas representa um enorme progresso pelo tempo livre que proporciona a muita gente, em sua maioria mulheres. 3. Você tem menos possibilidades de morrer em seu local de trabalho: 5.000 pessoas morrem em acidentes de trabalho atualmente nos EUA, enquanto em 1929 morriam 20.000. 4. O coeficiente intelectual global sobe três pontos por década. A mente das crianças melhora graças a um entorno mais saudável e pela melhor educação. 5. A guerra é ilegal. Pode parecer óbvio, mas antes da criação das Nações Unidas, nenhuma instituição tinha a possibilidade de impedir outro país de ir à guerra”. Esse último ponto pode parecer o mais discutível, tendo em vista o panorama global, mas em seu livro East West Street (Rua Leste-Oeste), sobre o nascimento do direito internacional, Philippe Sands faz uma afirmação semelhante: antes da Segunda Guerra Mundial, um governante poderia fazer com sua população o que quisesse sem que ninguém pudesse protestar. Agora, como fica claro com os rohingyas de Myanmar, pelo menos estoura um escândalo.

Devemos nos deixar influenciar pela realidade imediata ou observar movimentos de fundo mais profundos?

A única ameaça real que Gates vê no horizonte é o descontrole da inteligência artificial, mas afirma que ocorrerá um debate muito importante sobre isso em um futuro imediato. “O mundo é cada dia melhor, mas às vezes não temos a sensação de que é assim”, escreve. Pinker, por sua vez, dá sua própria resposta à teoria do “melhor dos mundos possíveis” de Pangloss: “Alguém que pensa isso é hoje um pessimista. Um otimista acha que o mundo pode ser muito, muito melhor”.

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