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Confiabilidade do exame antidoping sob suspeita

Técnicos de um laboratório em Colônia denunciaram que o modelo de frasco de urina mais usado no mundo pode ser aberto sem deixar rastros quando está congelado

Os frascos Bereg-Kit Geneva no laboratório antidoping de Montreal.
Os frascos Bereg-Kit Geneva no laboratório antidoping de Montreal.CHRISTINNE MUSCHI (REUTERS / Cordon Press)
Carlos Arribas
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A inviolabilidade dos frascos de urina que chegam ao laboratório é uma das verdades absolutas do combate ao doping. Tanto que as comissões de punição das diversas federações quanto o Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) dão esse item como certo na hora de definir uma punição e jamais admitem esse argumento por parte dos advogados dos atletas sob julgamento.

No entanto, não é bem assim. Os frascos Bereg-Kit Geneva não são tão invioláveis assim, como supõe seu fabricante, a empresa suíça Berlinger, que detém quase o monopólio dessa área. O fato foi admitido na noite deste domingo pela própria Agência Mundial Antidoping (WADA), que abriu uma investigação sobre um problema que pode colocar em questão um dos pilares do combate ao doping. Nesta terça-feira, o Comitê Olímpico Internacional (COI) soltou um comunicado em que registra sua “preocupação” com o problema e anuncia que contatou a WADA para obter a máxima garantia de que nos Jogos de Inverno de Pyeongchang, que começam em 14 de fevereiro, não haja nenhum problema com os frascos, que começaram a ser usados em setembro passado.

A possibilidade de eles serem abertos sem deixar sinais – e, portanto, de seu conteúdo ser manipulado — foi descoberta por acaso pelo laboratório de Colônia, na Alemanha, há algumas semanas, quando um laboratorista abriu um frasco congelado sem necessidade de recorrer ao abridor especial que garante a inviolabilidade. A WADA recebeu a denúncia e pediu explicações à empresa Berlinger, segundo a qual seus técnicos tentaram abrir os frascos com o método do congelamento prévio e não conseguiram. A informação não convenceu a WADA, que, segundo anuncia em comunicado, pedirá novos testes. A Berlinger enviou um vídeo aos laboratórios explicando que com o novo sistema é preciso apertar a tampa até o fim para se obter um fechamento total e que algumas pessoas podem esquecer de fazer isso.

Na jurisprudência do TAS, observa-se que, se um laboratório utilizou um sistema de envasamento certificado (como o da Berlinger, por exemplo), assume-se de cara que o frasco não pode ser aberto e fechado novamente sem deixar sinais. A frase conta com a força probatória dos sistemas de certificação internacional, mas, se for falsa, como pode comprovar o problema da abertura sem sinais dos frascos congelados, poderia dar margem para um número sem fim de reclamações por parte dos atletas punidos. “Mas não será assim”, diz o jurista Alberto Palomar. “O TAS não acatará um argumento baseado apenas na possibilidade de que o conteúdo do frasco possa ser alterado. O atleta deverá demonstrar que essa manipulação de fato aconteceu e influenciou no resultado final. E isso é muito difícil. Seria preciso uma análise do DNA, que é algo tão caro que muitos atletas não podem arcar com isso”.

O kit Bereg prevê três envasamentos: em um deles, um recipiente de plástico, o atleta urina diretamente. Na sua presença, o inspetor de controle divide essa urina em dois frascos de vidro com tampa de plástico marcados com as letras A e B, respectivamente. Os dois são enviados ao laboratório, que analisa a urina do frasco A e congela a do frasco B. Este último só será usado se o A der positivo e o atleta pedir uma contraprova. O frasco A é aberto em laboratório com um abridor apropriado sem testemunhas, enquanto que o atleta pode acompanhar a abertura do frasco B.

Segundo fontes do laboratório antidoping de Madri, que integra a rede de laboratórios reconhecidos pela WADA no mundo todo, a agência antidoping não os alertou diretamente sobre o problema com os frascos. “De toda maneira”, dizem, “ainda não começamos a usar na agência espanhola. Adquirimos um lote recentemente, mas ainda temos frascos do modelo anterior”.

A Berlinger foi fundada há mais de 150 anos na Suíça como uma empresa têxtil (inventou as fitas para barra) que entrou no ramo da fabricação de frascos de recolhimento de urina em meados dos anos 90, quando o combate ao doping se tornou um item economicamente rentável.

Poucos anos depois, ela se tornou praticamente o único fornecedor de todas as agências antidoping do mundo e dos grandes eventos esportivos. “São frascos muito caros”, dizem os compradores. “A agência espanhola para hoje 25 euros (100 reais) por kit, mas houve um período em que eles custavam mais de 100 euros (400 reais)”.

As primeiras dúvidas sobre a inviolabilidade dos frascos de urina Berlinger se tornaram conhecidas graças ao relatório de Richard McLaren, que relatava as manipulações do sistema esportivo russo, seu recurso generalizado ao doping e os mecanismos aos quais recorreram os agentes da FSB (antiga KGB) para abrir sem deixar sinais os frascos no laboratório olímpico de Sochi e poder trocar a urina para evitar resultados positivos.

Em resposta ao relatório, os engenheiros da Berlinger conceberam em meados de 2017 o novo frasco, o Berger-Kit Geneva, o qual, segundo o laboratório de Colônia, pode ser aberto sem deixar sinais simplesmente congelando-o.

A WADA tornou público o problema em um momento inusual, um domingo, quase à meia-noite na Europa, o que, segundo o jornalista alemão Hajo Seppelt, demonstra claramente que a agência sabia que ontem, segunda-feira, sua rede, a ARD, exibiria um programa em que se mostraria justamente, em estúdio, como os frascos novos podiam ser abertos sem dificuldade.

O laboratório de Sochi não foi, porém, o único local olímpico onde o modelo anterior da Beringer foi objeto de manipulações inapropriadas. Segundo um e-mail obtido por hackers russos de Fancy Bears, nos Jogos do Rio de Janeiro os técnicos do laboratório antidoping tiveram de lutar duramente para conseguir abrir os frascos.

O e-mail foi enviado por Francisco Radler, coordenador do laboratório, aos dirigentes olímpicos no Rio, e lhes informa que alguns dos frascos Berlinger pareciam não ter o tamanho padrão e não tinham como ser abertos com o abridor especial, razão pela qual foram então abertos pelas bordas, danificando as tampas no processo, o que impediu que os frascos A fossem depois fechados novamente depois de se terem retirado deles uma quantidade de urina para exames preliminares.

A WADA divulgou o problema em seu relatório sobre os Jogos do Rio, mas não se conhece o número total de frascos afetados e se, mesmo assim, procedeu-se à sua análise.

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