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“O tripé da ditadura, com tortura, desaparecimento e censura, está preservado no Brasil”

Para Julián Fuks, autor de 'A Resistência', o romance contemporâneo entrou na era da pós-ficção

Julián Fuks escreveu o aclamado 'A Resistência'
Julián Fuks escreveu o aclamado 'A Resistência'Renato Parada

A autoficção não surgiu hoje, mas tem vivido um de seus momentos de maior efervescência. O gênero, que se baseia em fatos autobiográficos, tem inúmeros representantes, a começar pelo norueguês Karl Ove Knausgård, um dos escritores mais vendidos do mundo. No Brasil, o romance A Resistência, que fala sobre exílio, adoção e ditadura – todos temas familiares ao próprio autor do livro, Julián Fuks – é um dos principais representantes do gênero. Para ele, a autoficção é hoje vanguarda na literatura e responde a anseios de como a própria política, em um termo mais amplo, é vivenciada hoje na sociedade.

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No livro Ética e Pós-Verdade, lançado no começo de dezembro de 2017, Fuks assina um artigo em que define o momento do romance como "pós-ficcional". Para ele, o formato nunca foi tão híbrido e, por isso, encontra hoje material não apenas na biografia dos autores, mas também na filosofia, política e historiografia. Falar a partir do "Eu" é imprescindível porque confere uma autenticidade única ao narrador e, segundo o escritor, em tempos de pós-verdade, os leitores estão ávidos pelo verdadeiro. Na entrevista abaixo, Fuks, que recentemente recebeu o Prêmio José Saramago por seu romance, fala sobre literatura e vida política no Brasil.

Pergunta. Você tem chamado o gênero de pós-ficção e não autoficção, por quê?

Resposta. O fenômeno é mais abrangente do que as pessoas costumam enxergar. Tem se dado muito destaque para esse elemento da autoficção, ou seja, a ficção baseada em fatos autobiográficos, mas esse é apenas um dos aspectos em que o romance tem se aproximado de outros discursos. Podem acontecer outras aproximações também. Uma aproximação com a historiografia, com o ensaio, com o discurso político, com a filosofia. Há uma série de hibridismos no romance contemporâneo e, por isso, chamo de pós-ficção. O que engloba tudo isso é que hoje há um tensionamento no conceito de ficção. É o elemento ficcional que tem sido cada vez mais transgredido.

P. Mas nada disso é exatamente novo, certo?

R. Sim. O termo “autoficção" surge na década de 1980, na França. É um fenômeno longevo, mas que vai ganhando força e se tornando hegemônico agora. Sempre houve uma tensão ao redor do que é ficção e o que é verdade no romance, mas recentemente há uma aproximação constante com o referente real. Essa tensão modifica, inclusive, a experiência de leitura dos romances, levando o gênero para outros caminhos. Essa parece ser a fronteira mais vanguardista do romance hoje. Se houve uma dissolução do gênero ao longo do século XX, hoje o que vemos é que algo que havia permanecido intocável, que é a ficcionalidade do romance, é o que tem sido agora transgredido.

P. E qual é sua hipótese para essa opção estar acontecendo agora de forma tão acentuada?

R. Lá em 1980, a autoficção surge num contexto da crise do sujeito, é um momento em que o indivíduo está sendo profundamente questionado. A noção de indivíduo e sujeito se tornam problemáticas. Não só o romance está em crise e se aproxima de outros discursos, mas a autobiografia também está em crise e acaba se aproximando do romance. É a percepção de que a gente não consegue ser fiel aos acontecimentos, não consegue narrar com precisão o que aconteceu, e mesmo quando há o impulso autobiográfico, ele se transforma em algo ficcional. Escrever ficção é, necessariamente, se pautar de acontecimentos à nossa volta e, se você quer ser preciso e fiel a eles, a tendência é que acabe, em alguma medida, ficcionalizando eles próprios.

P. Não é curioso que tanto escritores quanto leitores se voltem para a autoficção em um tempo em que se fala tanto em pós-verdade?

R. Em uma época em que a falsidade tem sido agressiva e a verdade se torna tão pouco confiável, como no caso das fakenews, é natural que o leitor procure algo de mais verdadeiro. E o verdadeiro não é necessariamente o literal ou o que é baseado, estritamente, em fatos reais. O verdadeiro pode estar em outro lugar que não o da factualidade. Parece sintomático e de fundamental interesse que as pessoas estejam procurando na literatura algo mais autêntico do que encontram em outros espaços.

O verdadeiro não é necessariamente o literal ou o que é baseado, estritamente, em fatos reais. O verdadeiro pode estar em outro lugar que não o da factualidade, como na ficção

P. A experiência de vida se tornou imprescindível para a escrita?

R. O que se tem hoje é uma busca da autenticidade da voz do narrador, algo que nos tornou sensíveis demais ao falseamento de discursos. O que se fazia tradicionalmente na literatura brasileira era a construção de um cenário distante do próprio autor, das circunstâncias do autor, em uma tentativa de denúncia social e construção de um olhar para o outro. A intenção, em si, era importante. Contudo, acabou resultando, algumas vezes, em um discurso de falseamento, no falseamento do olhar e da voz do outro. Uma nova tentativa de aproximação ao outro pode se dar a partir de um discurso muito próprio, a partir de uma experiência pessoal. Não é um escritor que tenta se fechar em si mesmo e só se importa com suas questões. Não me parece que a autoficção tenha que ser necessariamente narcisista e umbiguista. Pode ser uma autoficção de aproximação ao outro, mas que respeite o meu olhar, a minha voz e minha compreensão de mundo. Para ser, de fato, uma tentativa legítima de aproximação ao outro e não uma tentativa de invenção do outro a partir de um falseamento.

P. Nesse ponto, o interesse de escritores e leitores pela autoficção parece se aproximar das questões identitárias que tratam de “lugar de fala” e outros conceitos que passam pelo “Eu”.

R. É verdade. Parece que hoje temos dedicado um olhar, inclusive para política e compreensão de mundo, que passa necessariamente pelo “Eu”. Para dar um exemplo da minha vida pessoal. Só recentemente meu pai foi descobrir que os avós dele morreram em Auschwitz. Ele sabia que eles tinham sido enviados aos campos de concentração e que provavelmente morreram por ali. Recentemente, contudo, essa informação veio à tona e ele conseguiu, por uma pesquisa, chegar aí. O que eu me perguntava era por que não se falava disso na família dele? E a resposta é um pouco assim: não havia um interesse específico nos caminhos da família, nos caminhos do nome, nos caminhos do “Eu”. Havia um interesse geral no judaísmo, no marxismo, nos caminhos mais amplos da política, concebida como algo das coletividades. Hoje, o pessoal é político. As lutas identitárias trouxeram o elemento da identidade como o cerne da transformação política. Por isso, a gente passa a enxergar toda a nossa experiência a partir de um indivíduo, de um “Eu”.

P. Por outro lado, há quem já aponte um desgaste desse modelo de autoficção…

R. Pode ser que a gente já esteja se aproximando de um momento em que a autoficção já está perdendo sua relevância, justamente por ser repetida e executada por muitas pessoas. A tentativa, acredito, é buscar na minha vida simples e comezinha, tal como eu levo no dia a dia, o que há de experiência marcante e digna de escrita. O problema é que se cria uma geração de escritores tentando achar algum interesse em suas próprias vidas, quando não necessariamente ele está lá. Acredito que há uma busca por vezes excessiva da excepcionalidade dentro do ordinário e alguns livros fracassam porque tentam dramatizar algo que por si só não seria dramatizável, mas acredito que ainda há muito há se fazer na pós-ficção

O tripé fundamental da ditadura: tortura, desaparecimento e censura está plenamente preservado na sociedade brasileira

P. Seu último romance, A Resistência, tem tido um reconhecimento grande, em outubro, por exemplo, ganhou o Prêmio Saramago. Você credita ao sucesso a ter encontrado o tom certo dessa voz da autoficção?

R. Acredito que sim, o livro procura ter uma voz muito verdadeira e a sinceridade é uma virtude literária pouco comentada, pouco apreciada em tempos recentes, mas já foi defendida por Tolstói, no século 19, como a principal qualidade de um autor. Contudo, eu não descarto a importância que teve o contexto brasileiro em que ele foi lançado. Um livro chamado A Resistência, publicado em 2015, durante o dramático processo de impeachment, ou, para ser mais preciso, de golpe, ganhar relevância é simbólico. As pessoas foram atrás de uma narrativa que as ajudasse a encontrar uma reação ao que está acontecendo no país.

P. Só que o livro não chega a falar do momento político do Brasil hoje.

R. Falar da história a partir das reverberações na vida particular de cada um parece ter sido extremamente relevante. Não é só uma maneira de dar conta do passado, não é só uma maneira de observar os crimes que foram cometidos e nunca foram punidos, mas é um modo de explicitar o que continua vivo das ditaduras latino-americanas ainda hoje. No Brasil, por exemplo, a tortura continua sendo amplamente usada pelo Estado. As mortes praticadas por militares também têm sido massivas, sobretudo contra a juventude negra. Além disso, hoje há um ímpeto de censura muito forte surgindo na sociedade brasileira. Tentando silenciar artistas, interromper exposições, acabar com peças de teatro. O tripé fundamental da ditadura: tortura, desaparecimento e censura está plenamente preservado na sociedade brasileira. Assim, falar da ditadura militar, dos crimes dessa ditadura, é falar também dos males que persistem hoje na sociedade brasileira e como isso impacta na vida das pessoas.

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