Woody Allen, você parece puro teatro
Assisto a ‘Roda Gigante’ sem que me ocorra nada de ruim, mas é filme do qual me esqueço cinco minutos depois que termina
Imagino que a forma de se sentir vivo (e de colocar sólidas barreiras ao crepúsculo) de Woody Allen, esse homem inquestionavelmente genial que declarou, há muitos anos, que só acreditava no sexo e na morte, é trabalhar continuamente, parir implacavelmente um filme – e às vezes dois – todo ano. Independentemente de que alguns tenham sido melhores e outros piores, seus longas são um presente impagável para seus seguidores infinitos, entre os quais me encontro. E você sempre espera injustamente que ele mantenha o estado de graça, que sua imaginação continue em forma e que seu deslumbrante senso de humor, ironia e paradoxo siga provocando risos e sorrisos em nós. E também existe uma veia trágica nesse artista aparentemente risonho. Ele não faz piada quando afirma que o cinema que mais admira é o de Ingmar Bergman, esse retratista nórdico das brumas da alma.
Eu prefiro o Allen comediante ao dramático, mas reconheço que Crimes e Pecados, que talvez seja sua obra maior, combine admiravelmente os dois gêneros e que o essencialmente trágico Ponto Final - Match Point me pareça a última obra prima de seu cinema. Deixando claro o que mais gosto dele, reconheço que fico muito nervoso quando não encontro essas essências, quando tenho a sensação de que sente fervor pelo teatro filmado. Isso me aconteceu com Interiores, Setembro e Blue Jasmine, e também me parece insuportável o onanismo mental sobre a crise de criatividade, na linha do Oito e Meio felliniano, que perpetrou em Amarcord, e não vejo a mínima graça em sua infeliz comédia Para Roma Com Amor. Ou seja, muito poucas desilusões de minha parte sobre alguém que dirigiu 50 filmes.
Roda Gigante, que estreia no Brasil nesta quinta-feira, se desenrola nos anos cinquenta, ambientada no bairro de Coney Island, onde fica a praia natural de Nova York, cenário de alguns filmes memoráveis e onde Lou Reed situou seu anjo salvador em sua bela canção Coney Island Baby. Quem se dedica a iluminar a história é o mítico e já idoso Vittorio Storaro. É de se supor que ele fotografe o bairro e que existem numerosos cenários, mas não me abandona em nenhum momento a sensação de que tudo acontece num cenário teatral, um palco, que seria o lugar natural para essa trama e também pela forma com que Woody Allen a desenvolve, incluindo o tom e as interpretações. E não sei se o faz bem ou mal, pois dessa arte não sei nada, e a essa altura de minha existência tampouco estou disposto a aprender.
Os personagens e as situações também me fazem lembrar um intocável e atormentado ícone do teatro norte-americano dessa época, concretamente Tennessee Williams. Não me estranharia que da afligida boca da protagonista saíssem coisinhas líricas como: "Sempre confiei na bondade dos estranhos." É uma senhora arruinada por seus erros e que sofre de enxaqueca permanente devido à depressão que desenvolve por sobreviver com um marido alcoólatra a quem não ama, um filho piromaníaco (único detalhe de humor surrealista e cruel em que reconheço a personalidade do mestre Allen), um amante jovem com vocação poética mas que ganha a vida como salva-vidas de praia e uma enteada com passado tumultuado. Kate Winslet é uma atriz eminente no tipo de personagem pelo qual sentem ancestral fervor as academias e o Oscar, mas os atores e atrizes que a acompanham não me despertam nada de especial. É um filme ao qual assisto sem que me ocorra nada de ruim, mas do qual me esqueço cinco minutos depois que termina.
Roda Gigante
Direção: Woody Allen.
Atores: Kate Winslet, Juno Tempere, Justin Timberlake.
Gênero: drama. EUA, 2017.
Duração: 101 minutos.
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