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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Nem tudo na Internet tem o mesmo valor

Deveríamos começar a chamar as coisas pelo nome. E, neste caso, ‘regulação’ é mais adequado que ‘neutralidade na rede’

Protesto em Nova York, em 7 de dezembro, contra as normas que colocam fim à neutralidade na Internet
Protesto em Nova York, em 7 de dezembro, contra as normas que colocam fim à neutralidade na InternetMary Altaffer (AP)

No debate sobre a neutralidade da Internet, como em muitos outros nesta época de realidades emocionais, a semântica condicionou argumentos opostos. A decisão da Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (CFF, na sigla em inglês) de acabar com as normas que obrigam os provedores a garantir acesso igualitário dos usuários a todo o conteúdo on-line gerou polêmica, pois os defensores dessa neutralidade advertem que isso pode dar margem a uma Internet de duas velocidades – e até mesmo à censura na web. Mas existem nuances que esse termo, “neutralidade”, não reflete de maneira fiel.

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Em termos gerais, quem pode se opor à premissa de que a Internet seja neutra? E mais: quem pode defender que qualquer tecnologia, seja ela qual for, não pode ser neutra? Por isso, muitos dos criadores da Internet, as pessoas que pensaram na arquitetura digital que mudou o mundo, como Robert Kahn e David Farber, são contrários ao uso desse termo e se referem a tal princípio como “regulação da Internet”. Considerando os argumentos de críticos e defensores, é uma expressão que reflete de forma mais adequada a natureza desse debate.

Nem todo conteúdo da Internet é igual. A diferença é evidente – como afirmou Nicholas Negroponte, fundador do Media Lab do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), numa palestra de 2014 onde colocou em dúvida a máxima de que “todos os bits foram criados iguais”. Negroponte deu um exemplo esclarecedor: um livro inteiro, um romance, pesa aproximadamente um mega; por sua vez, somente um segundo de vídeo em streaming já pesa mais do que um mega, e um impulso elétrico de um marca-passo é uma fração desse mesmo mega. É óbvio então que nem todo conteúdo pesa a mesma coisa. E, portanto, não pode ser considerado igual.

Essa afirmação permite também outras reflexões. Do ponto de vista de um jornalista que trabalha num veículo de comunicação generalista, com rígidos processos de verificação das informações, é lógico não considerar que todo conteúdo tenha o mesmo valor. É fato que existem portais que publicam notícias falsas, material plagiado e conteúdos criminosos, ao passo que outros não publicam. Todos eles devem ser tratados do mesmo modo, numa Internet nivelada onde todos valem a mesma coisa? Sou consciente de que essa é uma questão polêmica e que levanta outro dilema, muito maior e para o qual não tenho resposta: quem decide, então, qual conteúdo é lícito e qual não é?

De certo modo, é lógico que as normas da chamada neutralidade na Internet tenham tido uma vida tão curta nos EUA, pois significam conferir ao Estado a capacidade de decidir a forma em que os provedores privados de Internet tratam o conteúdo, num país geneticamente contrário a qualquer tipo de intervenção governamental. Os argumentos expostos pelos membros da CFF, que acabaram com essas regras de neutralidade, concentram-se justamente no respeito ao livre mercado e na importância de reduzir a regulação num setor que sempre se caracterizou pelo dinamismo e a inovação.

Nesse debate, tem sido crucial a atividade em defesa dessas normas por parte das grandes plataformas de conteúdo da web, como Facebook, Google e Netflix. Todas mobilizaram os recursos ao seu alcance para focar o debate em torno do princípio de neutralidade, situando-se como defensores da liberdade de expressão e da transparência, pedindo que todos sejam tratados de maneira igualitária, e que a largura da banda não discrimine seus conteúdos.

Chama a atenção o fato de que tenha sido esse o seu argumento principal, já que praticamente todas essas plataformas discriminam o conteúdo que os usuários publicam nelas por meio de opacos algoritmos que sofrem constantes mutações e que são projetados, em última instância, para maximizar seus benefícios, normalmente gerados através de publicidade. Pedem neutralidade para serviços intrinsecamente opacos e desiguais. No acalorado debate das notícias falsas, foram esses os algoritmos que fizeram com que rumores de todo tipo tenham tido um peso excessivo para cidadãos do mundo inteiro, que deram credibilidade às mentiras dos partidários de Donald Trump e do Brexit [a saída do Reino Unido da União Europeia] e às campanhas de desestabilização russas.

Não há dúvidas de que a Internet deveria ser barata ou gratuita. E que as conexões deveriam ser todas de alta qualidade em todos os lugares do mundo, sem discriminar os usuários e respeitando o direito deles à intimidade. Mas também é certo – fato incontestável – que nem todo conteúdo da Internet pesa nem vale a mesma coisa. E pode ser que, fora dos EUA, em mercados mais afeitos à regulação, como o europeu, decidamos que é necessária uma maior regulação da Internet. Para elaborá-la e aplicá-la corretamente, porém, deveríamos começar chamando as coisas pelo nome. E, neste caso, “regulação” é mais adequado que “neutralidade”.

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