Noel Gallagher: “Meu pai era violento; o sacana do meu irmão, um idiota; meu outro irmão, outro idiota”
Músico inglês, que acaba de lançar um novo disco, ataca a própria família, em especial Liam. Além disso, tem um importante recado a dar para os usuários das redes sociais
É reconfortante constatar que algumas coisas correspondem fielmente à sua lenda. Em qualquer outra pessoa, essa autoconfiança, essa pose meio grosseira e essa visão simplista do mundo seriam vistas como irritantes. Em Noel Gallagher, porém, são bem-vindas, talvez por se encaixarem à perfeição nesse moleque de uma Manchester que já está tão distante, mas que ele resiste em renegar.
Ajudam também esse meio sorriso irônico e essas pequenas gargalhadas que lhe escapam ao constatar a veemência das próprias afirmações. Durante quase duas décadas Noel Gallagher (Manchester, 1967) liderou o Oasis, aquela que foi a maior banda do mundo. Em uma noite de 2009 decidiu pôr o ponto final. Continuou sozinho, no Noel Gallagher & The High Flying Birds, que agora lança seu terceiro álbum, Who built the Moon?
Noel era o compositor, o guitarrista, o trabalhador. Mas compartilhava o protagonismo com o irmão mais novo, Liam Gallagher, cantor e hooligan genial. Ambos protagonizaram uma das tragicomédias de ódio fraternal mais assombrosas da história. Entrevistar Noel Gallagher, algo raro entre os de seu ofício, não requer maiores estratégias. Trata-se de ligar o gravador e escutar como odeia o irmão e como ama seu cabelo — essa espessa cabeleira que, aos 50 anos, já tende para o grisalho, mas se mantém inteira. Uma inesperada metáfora do próprio artista.
Pergunta. O que o motiva a continuar escrevendo canções?
Resposta. Eu gosto. Quando comecei a escrever canções não tinha um tostão. Agora, 25 anos depois, tenho muito dinheiro. Mas continua não sendo importante, porque não preciso dele. Faço música porque gosto e gosto que outras pessoas gostem do que faço. Isso é muito importante, sobretudo no mundo em que vivemos hoje, com o terrorismo e toda essa merda. Se você sabe fazer música, a sua obrigação é colocá-la aí fora, porque não há muita música boa no mundo.
“A vida é o que importa. Meu pai era violento; o sacana do meu irmão, um idiota; meu outro irmão, outro idiota. Não tínhamos dinheiro. Essa era a minha realidade. O normal”
P. Escreveu várias canções que provavelmente ficarão para sempre.
R. 16.
P. Você as contou?
R. Supersonic, Slide away, Live forever, Wonderwall, The masterplan, Don’t look back in anger, Champagne supernova, Acquiesce, Half the world away, What a life, If I had a gun, The importance of being idle, Little by little, Death of you and me, Riverman e Everybody’s on the run.
P. Eu estava em Manchester no dia em que, depois de guardar um minuto de silêncio pelas vítimas do atentado [ocorrido em maio deste ano, durante um show da cantora Ariana Grande], a multidão começou a cantar Don’t look back in anger. Naquela tarde a canção adquiriu um significado completamente novo.
R. Sério? Eu vi na TV. Foi uma loucura.
P. O que sentiu?
R. Fiquei sem palavras. Todo o mundo está pensando nos seus, em silêncio, e de repente uma garota decide, por alguma razão, que vai unir todas as pessoas e começa a cantar. Nesse momento a canção é uma experiência compartilhada. Como fã da música, como crente em seu poder, nunca tive dúvida de que a música pode unir as pessoas. E ali se viu claramente. A canção em si é extraordinária. Não é uma peça de música extraordinária, como Strawberry fields forever. Mas eu a escrevi uma noite em Paris, sob chuva, estava bêbado. Trata de uma mulher que vê sua vida escapar. Então, levanta uma taça e pensa: não me arrependo de nada. Foi um hino sobre isso durante 20 anos. E agora é outro hino sobre a resistência, sobre o espírito humano.
P. “Toda vez que a cantamos, ganhamos”, disse no palco, no segundo show em homenagem às vítimas de Manchester, antes de cantá-la.
R. Os terroristas islamistas odeiam os jovens, a alegria, cantar. Por isso, quanto mais o fizermos, melhor. Se você vai me odiar, te darei um motivo. Cantemos, expressemo-nos, que as mulheres continuem sendo belas e as crianças continuem sendo jovens, e que eles se fodam!
P. Seu irmão Liam o criticou por não comparecer ao primeiro show depois do atentado. Depois se soube que tinha feito uma importante doação financeira.
R. Sou um cara reservado. Naquela noite decidi que todo o dinheiro extra que arrecadasse a partir desse momento daríamos às vítimas. Não sou tão inseguro para querer que saibam. Mas Liam... Precisa ver um psiquiatra. Acho que não está bem.
“Se os fãs têm alguma porra de dúvida de por que o Oasis não voltará, basta abrirem o perfil de Liam no Twitter. Pois essa merda tem sido assim há 20 anos. Que se danem”
P. Como era o lar dos Gallaghers quando crianças?
R. A vida é o que te cabe e o que você faz com isso. Em relação à vida dos meus filhos, a minha era muito dura. Para os meus dois filhos pequenos isso não importa. Cresceram com um pai rico e que é um astro do rock. Meu pai era violento; o sacana do meu irmão, um idiota; meu outro irmão, outro idiota. Meus pais trabalhavam duro e não tínhamos dinheiro. Essa era minha realidade. O normal.
P. Seus filhos tiveram sorte?
R. Como? Claro! Bom, eles não têm o impulso de se superar. Espero que encontrem uma paixão e ganhem a vida com ela. Tive apenas uma oportunidade. E aí está. Quando escrevi Live forever pensei: esta é a oportunidade. Eles vão dispor de uma rede de segurança. Mamãe e papai são legais, e há dinheiro. Dito isso, bom para eles. Eu queria estar na pele deles. Vão ser bacanas. E minha filha é danada de brilhante. [Noel tem três filhos: Anaïs (17 anos) de seu casamento com Meg Mathews; e Donovan Rory (10 anos) e Sonny Patrick (7 anos) do casamento atual, com Sara MacDonald]
P. Você diz que tem personalidade de filho do meio.
R. Os filhos do meio não têm a pressão do mais velho nem a atenção do jovem. Somos quase anônimos na casa. Eu cresci assim. Gosto de estar na sombra. Faço a merda do meu trabalho, me viro, é foda, vou para a estrada e, quando termino, retorno à minha vida e você não volta a me ver. Os holofotes não me interessam.
P. Não triunfou de verdade até quase os 30 anos. Isso o preparou para o que viria depois?
R. Claro. Antes de ir para os Estados Unidos com o Oasis já tinha estado lá três vezes. Não estava chapado, mas centrado no trabalho. O Oasis se transformou na maior banda do mundo porque nunca tirei um dia de folga. Desde 1991 até 1999 não desconectei. Jamais. Trabalhei o tempo todo para que aquilo que tínhamos criado fosse o melhor. As festas, as garotas, toda essa merda vai bem um dia, dois... talvez dois e a manhã do terceiro. Mas o que faz com que tudo valha a pena e te mantém lúcido é o trabalho.
P. Dizem que a fama se parece com as drogas.
R. Claro. A cocaína e o ecstasy ampliam uma parte da sua personalidade. A fama também. Por exemplo, seria justo dizer que se sabe mais sobre o Liam desde que ele abriu sua conta no Twitter. É tudo o que eu preciso dizer. O Twitter é a nova fama, né? Quando eu era pequeno, a gente não sabia o que as estrelas do rock faziam da vida. Agora qualquer imbecil sabe o que todo o mundo está fazendo. Não me interessa o Twitter porque estou satisfeito com quem sou.
“A Internet é a pior coisa que já aconteceu no mundo. Propaga o terrorismo, o ódio, a violência, a guerra, a pedofilia. Antes da Internet tudo era mágico, depois tudo virou um desastre”
P. Você fala de um momento mágico em uma banda, os meses antes do sucesso. Sente falta disso?
R. Isso é algo que você só vê quando olha para trás. Você anda sem segurança, vai com todo o mundo em uma van, carrega seu próprio equipamento. É algo real. Sim, eu sinto falta dessa ascensão. Mas há um momento em que há uma paralisação, e disso eu não sinto falta.
P. Quando você percebeu que tudo tinha acabado?
R. Na última turnê. Sempre houve brigas e discussões, mas ali eu percebi que já não curtia. Aquilo já tinha dado para mim. Eu tinha 43 anos. O primeiro terço da minha vida eu passei sobrevivendo, o seguinte foi fazendo daquela banda a maior do mundo, e pensei: “Sabe o quê? Eu gostaria de dedicar o resto do tempo a mim”. Me sentei no meu carro depois daquele show em Paris e pensei: “Que se foda esse imbecil [seu irmão Liam]”. Foi uma das melhores decisões que tomei na vida.
P. É difícil para você estar distanciado de seu irmão?
R. Não.
P. Tem vontade de se reconciliar com ele algum dia?
R. Não. Estou muito feliz assim. Não tenho saudades do Liam nem por uma porra de um nanosegundo. Mande um recado da minha parte aos fãs do Oasis: se eles têm alguma porra de dúvida sobre por que nunca voltaremos a nos reunir, que entrem na Internet e abram a conta do Liam no Twitter. Essa merda tem sido assim há 20 anos. Vocês fariam o mesmo? Bem, fariam isso por dinheiro. Mas e se vocês já tivessem dinheiro? Que se danem.
P. Você se considera a última estrela do rock?
R. Ninguém reivindicou o meu lugar. E é uma pena, porque eu gostaria de conhecer o novo “eu”. Algumas vezes pensei que alguém iria aparecer. Pensei isso do Alex Turner [do Arctic Monkeys], por exemplo. Mas essas pessoas fazem discos em seu quarto. Eu os faço para tocar para 50.000 pessoas. Por isso é que os grandes nomes dos festivais e concertos ainda são os de 20 anos atrás.
P. Do que você tem mais saudades quando pensa nos anos noventa?
R. [O fato de que] eram livres, abertos. Não tinha Internet, nem celulares, só você, seus pensamentos e a música. A Internet é a pior coisa que já aconteceu no mundo. Ela propaga o terrorismo, o ódio, a violência, a guerra, a pedofilia. Antes da Internet, tudo era mágico, depois tudo virou um desastre. Eu não ligo muito para o Brexit. Não votei. Não é algo que me afeta. A Europa está em uma encruzilhada. Os políticos parecem estar mais preocupados com a economia do que com a sociedade. A família do cara que explodiu a bomba em Manchester veio da Líbia. Deram a ele uma oportunidade na vida e esse porco se explode com uma bomba em um show de pop. O quão fodida tem que estar a sociedade para que aconteça algo assim? Mas aí dizem que você é racista, e você não pode falar do assunto. As pessoas acham que os políticos devem ser mais inteligentes do que nós, não? Nós só somos uns caras que curtem música, futebol, fumar, beber.
P. Do que você mais se orgulha?
R. De continuar por aqui. Meu novo disco não é nostálgico, não é brit pop, é novo, é fresco. Estou orgulhoso de ter coisas para dizer. Mas o que mais me orgulha é isto [sorri e mostra sua farta cabeleira]: esse cabelo. A porra da minha carreira inteira está aqui. Tudo isso que eu disse pra você sobre viver eternamente. Se isto não estivesse aqui, você não estaria sentado aí. Temos que agradecer e fazer orações por isto.
P. Como você gostaria de ser lembrado?
R. Eu me conformaria com ser lembrado. Meus filhos se lembrarão de mim pela maneira como terei agido com eles. Meus amigos também. Como o Liam se lembrará de mim é outra coisa totalmente diferente. A música que eu fiz durará para sempre. E alguém que escute minha música dentro de 50 anos eu gostaria que se lembrasse de mim como alguém que não arruinou sua própria vida. Alguém que aproveitou uma oportunidade, trabalhou duro... e teve um cabelo incrível.
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