Ódio que mata
Família de Raphaella Noviski chora morte da adolescente que sonhava em se tornar professora Na cadeia, assassino diz se arrepender de crime após aparecer com olho roxo. Polícia apura agressão
— Comprou a arma com que finalidade?
— Matar!
— Matar quem?
— Por qual razão?
— Porque eu odeio ela!
— Por que você odeia a Raphaella?
— Não sei.
As respostas são de Misael Pereira Olair, de 19 anos, que admitiu ter matado com 11 tiros no rosto a estudante Raphaella Noviski, de 16. Na última segunda-feira, ele pulou o muro de uma escola em Alexânia, nos arredores do Distrito Federal, e foi em busca de sua vítima. No primeiro interrogatório com a delegada Rafaela Azzi, Misael disse não saber o motivo do ódio. Mas com novas declarações do assassino confesso e de outras testemunhas que contam as investidas amorosas do rapaz e a rejeição da moça, Azzi diz ter condições de concluir o inquérito até a próxima sexta-feira pedindo que ele responda por feminicídio.
Raphaella Noviski estava no final da primeira aula. Eram 7h50. Com uma máscara no rosto e um revólver calibre 32 em punho, Misael circulou pelo Colégio Estadual 13 de Maio, onde estudou até outubro do ano passado, quando abandonou os estudos prestes a concluir o ensino médio. Entrou na primeira sala. Não encontrou o alvo. Partiu para a seguinte, de onde 33 alunos do 9º ano do ensino fundamental saíram gritando. Ficou a meio metro da vítima e efetuou os disparos na cabeça dela. Professores e os outros 385 alunos que estudam de manhã no local saíram desesperados.
Misael não se mostrou arrependido, em seu primeiro depoimento, gravado na delegacia, no mesmo dia do crime. Com a voz trêmula e aparência assustada, ele mudou o discurso no dia seguinte, após ser encaminhado ao presídio de Alexânia e chegar com o olho esquerdo roxo à audiência de custódia, em que o juiz converteu o flagrante em prisão preventiva. “Tô (arrependido). De verdade”, disse, em nova conversa com a delegada, para quem pediu uma Bíblia.
O jovem atribuiu a lesão no olho a uma queda no banheiro do presídio, aparentemente por medo de continuar sendo vítima da fúria da prisão de Alexânia, que tem 94 presos, 26 acima da sua capacidade de vagas. A Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária de Goiás diz que ele foi agredido por outro preso que estava aguardando uma audiência na mesma cela antes de ser isolado em outra com o motorista suspeito de ser o seu comparsa. A agressão, segundo a pasta, está sendo apurada pela polícia.
O advogado Joel Pires de Lima, nomeado para defender Misael na audiência de custódia, disse que informou ao Judiciário que o jovem tentou suicídio ao menos três vezes. “Capaz de ele ter sido estuprado lá dentro”, afirmou. “Se ele [Misael] antes já era problemático, o Estado conseguiu acabar com o resto dele. O Estado está permitindo [agressão] de forma omissiva”, afirmou. O Judiciário goiano não se manifestou sobre o relato do advogado.
Uma mãe dilacerada
Consternada e com a voz embargada pelo choro intenso, a mãe de Raphaella, a comerciante Rosângela Cristina Afonso da Silva, de 37, não acredita no arrependimento de Misael. “Não acredito, de forma alguma, no arrependimento dele. Ele premeditou matar a minha filha um ano antes. Uma pessoa dessa não se arrepende”, enfatizou, considerando as declarações dele à delegada. “Ele repetiu que tinha ódio dela. Ódio por quê? Por que ela não queria namorar ele? Isso justifica matar e dar 11 tiros? Nada justifica. Nada.”
Após dizer que a sua família está “dilacerada”, a mãe da vítima clamou por amor: “O ódio está contaminando as pessoas. O menino de Goiânia assistiu a casos dos Estados Unidos e fez aqui no Brasil”, afirmou ela, solidarizando-se com os familiares dos dois alunos que morreram e de outros quatro que foram feridos a tiros por outro colega de sala, dentro do colégio particular Goyases, na região leste de Goiânia, no mês passado.
Rosângela mora em Brasília desde que se separou do pai da adolescente, que se mudou para Belo Horizonte, mas diz que sempre mantinha contato com a filha. “Carrego o sorriso de uma criança muito doce, muito verdadeira, muito amiga da família e muito carinhosa”, contou. “Ela interagia bem com os demais alunos. Era participativa, comunicativa e tinha vários amigos”, afirmou a diretora do colégio, Luciana Machado.
Misael é descrito com o comportamento oposto. É considerado bastante fechado e calado pelos vizinhos. Ele morava com a mãe e a irmã mais velha em uma casa a 650 metros de onde Raphaella vivia com a irmã de 18 anos, a avó e os tios maternos. Em julho do ano passado, mês de aniversário de Raphaella, tentou entregar um presente a ela na casa da avó, mas sem sucesso.
Enquanto estava matriculado, Misael faltava muito às aulas, mas conseguia ter um bom desempenho nas avaliações. Professores tentaram de toda forma mantê-lo na escola, mas não conseguiram. “Ele tinha nota para passar. A gente falava que estava faltando pouco tempo para ele concluir o ensino médio, e ele disse que isso não faria diferença na vida dele”, lembra a diretora, ressaltando que o jovem nunca teve problemas de indisciplina na instituição de ensino. “Ele não sabia lidar com o não. Nem todas as pessoas conseguem lidar com o não com facilidade.”
Teste psicológico
Antes da conclusão do inquérito, a polícia vai solicitar exames psicológicos e psiquiátricos de Misael. “A primeira impressão que ficou era de um ser humano frio. Ele trouxe a lume características de depressão. Vamos pedir avaliação psicológica e psiquiátrica para aferir se a depressão é o pano de fundo desse crime, além da obsessão pela menina. Há uma característica de isolamento muito forte nele”, observou a delegada. “Estamos falando da banalização da vida. Mata-se por pouco, mata-se por ódio e depois tenta se justificar. Não tem justificativa, óbvio”, seguiu Azzi. “A análise deve partir de outros contextos: existe segurança pública, como é a formação do cidadão, o Estado ajuda na educação, existe amparo religioso? Essas facetas, na formação do cidadão, são importantes para a gente aferir porque está tendo esse impacto, esse crescente número de ódio e desprezo”.
Para o coordenador do Núcleo de Estudos Sobre Criminalidade e Violência (Necrivi) da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dijaci David de Oliveira, a ascensão de discursos e práticas de ódio reflete negativamente na vida de grupos minoritários. Para ele, quando se recusa o debate da condição da mulher na sociedade e seus direitos também se contribui para manter os aspectos que influenciam nas altas estatísticas de feminicídio no país.
De acordo com a mais recente edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, 4.657 mulheres foram assassinadas no Brasil e 533 casos foram classificados de feminicídio, um crime que só entrou como tal para o Código Penal em 2015. O Mapa da Violência mostrou, há dois anos, que 106.093 pessoas morreram por serem mulheres, em pouco mais de três décadas, entre 1980 e 2013. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima uma média de 4,8 assassinatos para cada 100.000 mulheres no país.
Alexânia está chocada com o crime que interrompeu o sonho de Raphella de se tornar professora. Boa parte da população alimenta sentimento de vingança contra Misael e a sombra de seus atos alcançou a sua própria família: os parentes do rapaz deixaram a cidade por causa de ameaças.
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