William Waack representa o que a sociedade não tolera mais
O ativista Celso Athayde é do Partido Frente Favela Brasil, que acionará o apresentador na Justiça por declarações racistas
Nessa última quarta feira, mais precisamente às 16h45, minha timeline foi invadida com a expressão: “Isso é coisa de preto”. Conheço bem essa expressão, ela é a forma mais objetiva de apontar quem você acha ser uma pessoa menor, menos educada, menos capaz e menos humana. Para quem possui a pretensa superioridade étnica essa expressão é clássica, inconfundível e recheada de ódio, desprezo pelo outro, seja lá quem for. É preto e pronto. Para mim, era mais uma onda de racismo, como essas que vemos nas redes sociais toda hora. Só que não. Essa onda tinha um surfista famoso, essa onda era protagonizada por ninguém menos que um mestre da comunicação, era ele: William Waack. Na mesma hora um filme passou pela minha cabeça, minha experiência "Waack" foi em 2000 .
Quando o rapper MV Bill e eu apresentamos para os moradores da Cidade de Deus um videoclipe de 10 minutos chamado Soldado do Morro, fizemos um grande evento para cerca de 30.000 pessoas na favela. Era dia 25 de dezembro, noite de Natal. Levamos shows de Caetano, Djavan, Dudu Nobre, Cidade Negra, além do próprio Bill que começava sua carreira. No clipe apareciam algumas imagens de jovens armados, e como a TV Globo estava presente filmou o telão e o evento.
O senhor Waack, que na ocasião substituía a apresentadora Ana Paula Padrão, que estava de férias em Nova York, nos xingou em rede nacional. Ele destilou todo o seu preconceito e arrogância costumeira contra nós afirmando na tela que o que fazíamos era apologia ao crime. O episódio virou caso de polícia, que acabou requisitando uma cópia do videoclipe sob alegação de que faria, como disse Waack, apologia ao crime organizado. Nós não tínhamos dinheiro para pagar um advogado para processá-lo e, lógico, brigar com a TV Globo parecia suicídio.
Bill e eu resolvemos ir à Globo para acertar as contas com ele e acabamos num debate riquíssimo com o então diretor de comunicação, Luis Erlanger, que se tornou um dos nossos melhores amigos, e nos convenceu de que a opinião do moço não representava a opinião da emissora. A maior prova de que ele não mentia é que seis anos depois, aquelas mesmas imagens fora de contexto — que Waack usou para nos execrar nacionalmente —, foram reeditadas e transformadas no filme Falcão – Meninos do Tráfico, que recebeu prêmios em mais de 20 países. Mais que isso, foi considerado um filme que mudou a tevê brasileira. Foi um projeto costurado pelo próprio Erlanger e abraçado por seu gerente social na época, Luiz Roberto Ferreira.
Nossa posição em relação a Waack externamos em vários momentos, inclusive no próprio livro Falcão Meninos e Mulheres, onde contamos os bastidores do documentário.
Quando a noticia sobre Waack veio à tona, tenho certeza de que não surpreendeu ninguém, por tudo que ele já fez e faz. Pelas posições debochadas que ele tem em relação aos movimentos sociais e a qualquer movimento que não seja alinhado com sua postura elitista, ou mesmo com seus princípios estéticos.
Faço essa reflexão sem nenhum prazer, ao contrário. Fico triste de ver um homem tão culto, que prestou serviços tão relevantes ao jornalismo do país, manchar sua carreira com um fato tão grave. Triste também por ver que essas práticas estão aí e só conseguimos provar por acaso, pois os racistas negam que são racistas até a morte.
Vi a nota emitida pela TV Globo. Apesar de ela dizer que afastou Waack, eu acho impossível que ele não seja demitido, por várias razões. A primeira é que a repercussão desse fato não poderia ter sido mesmo ignorada. A Globo foi profissional, estratégica, cirúrgica e rápida na hora de dar a resposta. Não o jogou para os leões e não passou a mão na cabeça. Pode ser até que haja um acordo para um pedido de demissão. Mas, neste caso, não havia outra alternativa, apesar de alguns dizerem que a própria emissora produziu esse fato, o que eu não acredito.
Outra razão é que nos últimos anos a Globo tem olhado mais para o público das favelas e, sobretudo, para os afrodescendentes. Basta olhar para a programação mais recente, como o Esquenta, ou o avanço do fenômeno de Lázaro Ramos, Thais Araújo, ou a presença de negros como Manoel Soares e Tia Má no programa da Fátima Bernardes na condição e coapresentadores. A um nível mais local, essa lógica também tem crescido.
Lógico que estou falando de uma presença maior e não numa participação ideal, até porque estamos longe disso. Mas entre o grande jornalista e os 112 milhões de pessoas negras ou pardas que consomem 1,5 trilhão de reais por ano, a Globo não poderia ter dúvida. Entre Waack e a pauta que a emissora teria que abandonar para abrigá-lo, como a defesa da diversidade e do combate ao racismo no esporte, a Globo escolheu.
Este episódio só mostra o quanto o racismo esta naturalizado, impregnado na cultura de muita gente. Racismo que nos impossibilita chegar na civilização do século XXI. O Seu Willam não é o único que pensa assim, que fala assim, que reproduz esse ar de pretensa superioridade sobre outras pessoas e raças. Mas ele vem aos poucos se tornando um símbolo desse comportamento. Para ser franco, a resistência que a Globo tem em muitos setores está relacionada com o que pessoas como Waack representam. Pois bem, se a Globo tem seus interesses comerciais para demiti-lo, isso é legitimo. Se ela tem seus compromissos morais e éticos para dispensá-lo, isso é necessário.
Cabe a ela agora escalar Heraldo Pereira no lugar desse moço e, se isso acontecer, eu vou propor um buzinaço nacional para homenagear Waack. A emissora mostrará assim que é sensível e sintonizada com os novos tempos. É hora da Globo ratificar a demissão, cortar a própria carne ainda que doa. Pois apesar de ser um dos mais importantes e cultos jornalistas que conhecemos, ele há tempos representa um tamanho retrocesso que a sociedade não tolera mais.
Celso Athayde é ativista social, fundador da Central Única das Favelas (Cufa) e do Partido Frente Favela Brasil
Frente Favela Brasil acionará Willam Waack na Justiça por declarações racistas
O partido Frente Favela Brasil divulgou um comunicado informando que decidiu entrar com uma denúncia contra o apresentador da TV Globo William Waack, no Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ). Em vídeo que circulou na internet no último dia 8 de novembro, Waack foi flagrado fazendo um comentário racista durante cobertura das eleições nos Estados Unidos em 2016. Depois de reclamar das buzinadas na rua, que atrapalhavam o trabalho no estúdio, o apresentador diz: "Você é um, não vou nem falar, eu sem quem é...". E depois, virando-se para um colega diz: "É preto".
"Tomamos a decisão de acionar o nosso Departamento Jurídico porque o Frente Favela Brasil entende que não cabe mais esse tipo de fala. Isso é inadmissível em todas as esferas da sociedade, vindo de um formador de opinião em uma das principais emissoras de televisão se torna mais grave ainda. Não podíamos ver aquele vídeo e ficarmos parados”, explicou Wanderson Maia, co-presidente do Frente Favela Brasil.
A Globo afastou o apresentador de suas atividades e soltou uma nota em que afirma ser " visceralmente contra o racismo em todas as suas formas e manifestações".
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.