A professora que deu a vida para salvar suas crianças em Janaúba
Heley Abreu lutou contra incendiário e retirou alunos pela janela na cidade do norte mineiro. Creche não tinha extintor nem alvará e professores reclamam de condições de segurança
Ensinar era o propósito e o símbolo da reconstrução da vida da professora Heley de Abreu Silva Batista, em Janaúba, no norte de Minas Gerais. Aos 43 anos, cuidava dos alunos como se fossem seus filhos antes de ter o corpo queimado durante a luta travada com o vigia Damião Soares dos Santos, que ateou fogo na creche em que trabalhava, matando ela, oito crianças e a si próprio. “Ela jamais deixaria os alunos para trás”, diz a professora de educação física, Evani Cunha, que trabalhou com Heley ao longo de 15 anos. “Os alunos a ajudaram a dar a volta por cima depois da morte do filho. Ela não sossegaria enquanto não salvasse todos eles.” O primogênito de Heley morreu afogado na piscina de um clube da cidade, aos quatro anos, quando ela estava grávida do segundo filho. Naquela época, era professora do ensino fundamental. Encontrou forças no convívio diário com crianças. A sala de aula lhe ensinou que era possível reencontrar a esperança e tocar em frente.
Heley estava na primeira sala atacada pelo incendiário na creche. Ela cuidava de uma turma do maternal, com 16 crianças entre dois e quatro anos. Ao perceber que Damião corria em direção aos alunos lançando combustível e chamas de fogo, que rapidamente se espalharam pela sala, a professora passou a retirar criança por criança através de uma estreita janela que dava no corredor da creche. Até que o homem a alcançou, e sua pele começou a queimar. De acordo com os primeiros depoimentos colhidos pela polícia, Heley lutou com Damião até ficar inconsciente e não ter mais condições de salvar os remanescentes de sua turma.
“O que essa professora fez foi ato de heroísmo e lealdade pelos seus alunos. Ela não os abandonou”, afirma Bruno Fernandes Barbosa, delegado responsável pela investigação do crime. Apesar da atitude que a transformou em mártir na cidade do norte de Minas Gerais, Heley era uma professora que convivia com dilemas comuns a tantos colegas de profissão. Por problemas nas cordas vocais, tinha a voz rouca, o que não a impedia de ser uma das mais empolgadas nas gincanas da escola. “Ela era briguenta e competitiva. Estava sempre gritando para incentivar os alunos nas provas. Não perdia uma gincana”, conta Evani Cunha, conhecida como Tiazinha em Janaúba.
Lecionar era uma vocação precoce. “Foi ela quem me ensinou a ler, quando a gente ainda era pequena. O que ela mais gostava era brincar de escolinha”, lembra Dilzane Rodrigues Cardoso, de 40 anos, que cresceu no mesmo bairro de Heley, em São Gonçalo. Juntas, dividiram uma infância humilde, em que a futura professora já dava mostras de sua bondade. “A casa da Heley era a única da rua que tinha televisão colorida na época. Ela abria a janela e a gente ficava em cima da árvore assistindo. Foi uma grande companheira”, afirma Dilzane. Ela só deixou o bairro de São Gonçalo ao se casar com Luís Carlos Batista, que ficou paralisado ao receber a notícia de que a mulher não havia resistido às queimaduras. Ela se desdobrava entre o expediente na creche, as obrigações com os filhos e as tarefas domésticas para que o marido pudesse concluir a faculdade de odontologia.
Com 90% do corpo comprometido por graves ferimentos, Heley teve a morte confirmada na noite de quinta-feira. Deixou dois filhos adolescentes e um bebê de um ano e três meses. Janaúba parou na tarde desta sexta-feira para acompanhar o enterro da professora. Em caixão fechado, o corpo foi levado por um caminhão do Corpo de Bombeiros em cortejo fúnebre até uma capela improvisada em frente ao cemitério da cidade, que viu parte de seu comércio fechar as portas em sinal de luto pelas vítimas da tragédia. Cerca de 500 pessoas acompanharam o velório de Heley, entre elas a técnica em farmácia Edna Cardoso, de 43 anos, que estudou na mesma sala da professora nos tempos de colégio. “Ela sofreu muito naquela sala. Mas não me surpreendo por seu esforço em salvar os alunos. Sempre teve um sorriso no rosto e, principalmente, o coração generoso. Vai fazer muita falta.”
Luta contra o descaso
Em seus pronunciamentos, o prefeito de Janaúba, Carlos Isaildon Mendes, tem se esforçado para isentar o poder público de responsabilidade pela tragédia, pelo fato de o vigia nunca ter levantado suspeitas ou dado demonstrações explícitas que indicassem transtorno mental, segundo funcionários da creche. Na cidade, Damião, que também vendia picolés, era visto como figura pacata e de poucas palavras. Porém, colegas de profissão de Heley que acompanharam o velório se queixam das condições de trabalho não só na creche, mas também nas escolas do município. O Centro Municipal de Educação Infantil Gente Inocente, onde a professora dava aulas, não contava com nenhum extintor de incêndio e nem alvará de funcionamento do Corpo de Bombeiros. Para apagar o fogo, moradores vizinhos usaram baldes com água e tiveram de se espremer por entre os portões e corredores estreitos da creche.
“Nenhuma escola da cidade, seja municipal ou estadual, tem extintor de incêndio”, afirma a professora de matemática e ex-diretora de escola, Maria José Nogueira, que também era amiga de Heley. Consultada pela reportagem, a prefeitura não soube informar se as escolas sob sua responsabilidade dispõem de ao menos um extintor. Apenas confirmou que não havia o equipamento na creche. “Nós, professores, trabalhamos em condições muito ruins na cidade. Creches e escolas não têm estrutura, muito menos segurança”, prossegue Maria José. Outras colegas de Heley relataram ainda que o acesso à creche Gente Inocente não era controlado. Só havia vigilância – Damião, no caso – no período noturno.
Inaugurada em 2000, a creche também não tinha câmeras de segurança. A situação das escolas é um reflexo da maioria dos serviços públicos oferecidos na região. O hospital Fundajan, por exemplo, que atende pacientes de várias cidades e recebeu 15 feridos da tragédia, esteve prestes a fechar as portas por falta de recursos em agosto deste ano. Quando as primeiras crianças chegaram para o atendimento de emergência, não havia sequer analgésicos no estoque de medicamentos. Em mais de duas décadas de ofício, Heley costumava se queixar da estrutura dos locais em que trabalhava, mas nunca desistiu de fazer sua parte como educadora. Maria José espera que a memória da mulher que ensinou Janaúba que é possível reencontrar a esperança e tocar em frente sirva para sensibilizar autoridades sobre a necessidade de mais investimentos na educação. “Vivemos um descaso de muitos anos e várias gestões, não só em Janaúba, mas em grande parte das escolas do Brasil. Espero que o exemplo da Heley faça com que o poder público pare de cruzar os braços diante da nossa situação.”
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