Candidato a presidente sem partido? STF debaterá a ideia barrada no Congresso
Procuradora-geral, Raquel Dodge, apoia o fim do monopólio dos partidos políticos para que qualquer cidadão possa participar de eleições
As chamadas candidaturas independentes, ou avulsas, serão debatidas pelo Supremo Tribunal Federal após a ideia ter sido barrada durante os debates da reforma política no Congresso. A possibilidade de uma pessoa se apresentar como candidato em eleições mesmo sem pertencer a um partido chegou às instâncias superiores devido a uma ação movida pelo advogado Rodrigo Mezzomo, que tentou se candidatar de forma independente para a prefeitura do Rio de Janeiro em 2016, mas foi barrado pela Justiça Eleitoral. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, enviou um parecer favorável às candidaturas avulsas com base no Pacto de São José da Costa Rica, assinado na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 e ratificado pelo Brasil em 1992.
O pacto prevê que todo cidadão possa participar de assuntos públicos, "diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos". Estabelece também que todos podem "votar e ser eleitos em eleições periódicas" e "ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país". No entanto, a Constituição Federal exige que candidatos estejam vinculados a partidos políticos, uma regra que remonta a 1945, no final da ditadura de Getúlio Vargas.
A mudança desta regra é defendida por partidos como Rede Sustentabilidade e Novo, personalidades como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o advogado Modesto Carvalhosa — que, aos 85 anos, chegou a cogitar ser candidato independente em caso de eleições indiretas — e grupos como a Bancada Ativista, de viés de esquerda.
O movimento, que apoiou alguns ativistas de partidos como o PSOL e a REDE nas eleições para a Câmara de Vereadores de 2016, explica que "as candidaturas avulsas abririam espaço para a oxigenação do sistema político com participação de pessoas que não se identificam com os partidos existentes ou com sua dinâmica de funcionamento". Também argumenta que "motivariam partidos a se tornarem mais democráticos e coerentes por tirar deles o monopólio da disputa eleitoral, criando uma concorrência saudável". E acrescenta: "Não à toa, 91% dos países democráticos permitem candidaturas independentes. Partidos são importantes e centrais em uma democracia, porém são também insuficientes".
A Bancada Ativista não está sozinha na defesa das candidaturas avulsas. Ela forma parte da organização Nova Democracia, que reúne coletivos como Acredito, Agora! ou Quero Prévias, entre outros, na defesa desta agenda, que inclui as chamadas "listas cívicas" em eleições legislativas proporcionais. Ou seja, a possibilidade de "diversos candidatos independentes se juntarem em um projeto político e concorrerem coletivamente", segundo explica. "A contagem de votos funciona da mesma forma que ocorre para partidos e coligações, com a soma de votos de candidatos de uma mesma lista sendo o que determina se esta ganhará uma ou mais cadeiras. Acreditamos que política é uma construção coletiva, e portanto listas cívicas são um complemento importante a candidaturas independentes", argumenta a Bancada.
O problema dos "puxadinhos jurídicos"
O tema não avançou na Câmara dos Deputados, onde se discutia uma reforma política, e agora chega ao Supremo a partir do questionamento feito por Mezzomo — que já foi filiado ao PSDB e ao Novo. No dia 5 de outubro, o plenário do STF seguiu o relator, o ministro Luís Roberto Barroso, e reconheceu a repercussão geral do caso, o que significa que uma decisão favorável a Mezzomo valerá para todos aqueles que queiram apresentar uma candidatura independente.
Diogo Rais, professor da Mackenzie e especialista em Direito Eleitoral e Constitucional, diz ver com preocupação esta possibilidade. "A Constituição destina para o partido político o fundo partidário, a possibilidade de registro de candidatura, o tempo de rádio e TV... São vários itens. Todos os cálculos são feitos por meio das agremiações partidárias", explica o especialista, para quem o "ato de filiação a um partido político dá uma espécie de direitos e procedimentos" que não estariam sendo revistos caso o STF aprove as candidaturas avulsas. "O Congresso poderia mudar todos esses itens e fazer uma ampla reforma. O problema é que mudar um item significa deixar o sistema ainda mais esquizofrênico, onde a gente já tem uma dificuldade de representação social. Com uma candidatura avulsa, como vai ficar o financiamento? Eu sozinho posso pegar dinheiro público? Como fica isso? Como ganho tempo de TV? Se na última eleição tivemos meio milhão de candidatos, imagina se fosse possível candidatura avulsa! Como vamos controlar isso? Como vai ser a prestação de contas?", questiona. "A proposta é atraente, mas vamos ter problemas maiores ainda. Porque se você muda uma das peças que forma a base do nosso sistema sem mudar todo o restante, então ele tende a ruir", argumenta.
Rais diz ainda ver perigos na judicialização de um tema que, para ele, deveria ser tratado no Congresso via reforma política. Um dos riscos é o de se criar "puxadinhos jurídicos que depois o sistema não vai assimilar", segundo explica. Mas ainda que o Legislativo tomasse a iniciativa e voltasse a debater as candidaturas avulsas, o especialista se diz contra por enxergar o risco de um enfraquecimento ainda maior dos partidos políticos. "O sistema partidário tem vários problemas e defeitos, mas deveríamos resolvê-los, e não simplesmente acabar com os partidos", explica. "Por exemplo, nós temos um grande número de partidos e não temos fiscalização interna. Então temos que consertar a democracia interna partidária, para que as legendas fiquem mais transparentes e mais democráticas. O problema é que jogamos tudo para elas e as blindamos", acrescenta.
Congresso vai aprovar o fim do monopólio dos partidos políticos?
O advogado Rodrigo Cyrineu, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, discorda dos posicionamentos de Rais. "É óbvio que uma candidatura avulsa vai ter que assumir prejuízos de não ter fundo partidário o tempo de TV. Ainda assim, a gente pode negar as pessoas este direito de se candidatar? Eu entendo que não", explica o especialista. Ele também não vê problemas no fato de o Supremo deliberar sobre o assunto. Citando teóricos de Direito, defende que a Corte pode "substituir" o Legislativo "quando as instituições não estiverem funcionando ou Congresso estiver interessado em manter o status quo". Assim, uma possível ação do Supremo significaria "desobstruir os canais de mudança política", diz ele. "Com tudo o que vimos, tem como dizer que este Congresso vai aprovar o fim do monopólio dos partidos políticos? Agora, se se autoriza que pessoas se candidatem, isso vai ter o efeito de reinventar os partidos. Porque eles vão ter que atrair bons quadros. Além disso, o próximo passo seria discutir fundo partidário, tempo de TV... A não ser que o Congresso continue nesta inércia, a tendência é que a discussão migre para ele. Isso se chama diálogo institucional", argumenta.
A Bancada Ativista também acredita que as candidaturas independentes não enfraqueceriam os partidos. "Na realidade, ajudariam a fortalecê-los, criando uma concorrência saudável e forçando-os a atuar de forma mais democrática e coerente", diz. O coletivo também argumenta que, ao olhar para países que permitem candidaturas avulsas, "o número de candidatos que são eleitos nunca é muito elevado", ou seja, eles "não tiram o papel determinante que partidos desempenham". E rebate o argumento de que as candidaturas avulsas beneficiarem figuras midiáticas e ricas. "A realidade é que atores poderosos ou influentes, com grandes chances de se eleger, não precisam da possibilidade de candidaturas independentes para saírem candidatos. Eles já encontram espaço em partidos com facilidade. Quem não tem esse benefício são justamente as vozes marginalizadas, que passariam a ter mais chances de concorrer em eleições".
Constituição Federal versus tratados de direitos humanos
Em 2004, o Congresso Nacional aprovou a seguinte emenda constitucional: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais". Quatro anos depois, no final de 2008, o Supremo Tribunal Federal decidiu que tratados de direitos humanos são “supralegais”, ou seja, devem valer mais que as próprias leis do país, mas devem valer menos que a Constituição Federal. Afinal, qual decisão é válida?
Segundo Diogo Rais, professor de Direito da Mackenzie, a decisão do Congresso Nacional atinge apenas os tratados ratificados depois de 2004. Quando deliberou sobre o tema em 2008, o STF julgava uma ação sobre a legalidade da prisão do depositário infiel, conforme determina a Constituição. Entretanto, o Pacto de São José da Costa Rica, ratificado em 1992, estabelece que a única prisão por dívida possível é por falta de pagamento de pensão alimentícia (também determinada pela Constituição).
Segundo explica Rais, o Supremo decidiu que valia o que estava no tratado. Ao mesmo tempo, a prisão do depositário infiel não foi considerada inconstitucional e sua previsão continua na Carta Magna (que é superior aos tratados). Mas, na prática, a prisão passou a ser ilegal, devido ao entendimento de que as leis que operacionalizam este tipo de medida coercitiva estão abaixo dos tratados internacionais de direitos humanos.
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