_
_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

A favela não é um zoológico

Ninguém pode transformar favelas em zoológicos aos quais se vai para ver “como são os pobres”

Juan Arias
Rocinha, a maior favela do Brasil, vive dias de tensão
Rocinha, a maior favela do Brasil, vive dias de tensãoMario Tama (Getty Images)

Muitos europeus que chegam ao Rio sentem uma espécie de atração fatal pela miséria. Uma vez um amigo espanhol me disse: “Tenho uma curiosidade especial em saber como são os pobres das favelas”. Para a da Rocinha, ocupada pelo exército, com a comunidade ainda atemorizada e transtornada com os tiroteios, a empresa Favela Tour levou ontem, dia 25, segunda-feira, 20 turistas franceses. Um morador, ainda traumatizado com a violência que está vivendo, comentou ao blog O Antagonista que aqueles turistas lhe causaram uma sensação estranha: “Parece que somos seres de uma espécie diferente. Nem com o clima em que estamos vivendo os turistas param de visitar a favela”.

Mais informações
Subiu o morro como Antônio, desceu como Nem da Rocinha
“Há lugares do Rio em que a polícia é despótica, sufoca a vida dos jovens”
Misha Glenny: “Os grandes traficantes brasileiros não moram nas favelas”
“A Rocinha não precisa de teleférico, mas sim de saneamento básico”

Talvez seja essa morbidez inconsciente de considerar as favelas como um zoológico no qual se visitam bichos humanos diferentes o que acabe perpetuando o mito dessas mais de mil comunidades, que são um terço da “cidade maravilhosa”, e que constituem uma reserva turística e de votos para os políticos na hora das eleições. Passam governos pelo Rio, de todos os matizes políticos, e as favelas se perpetuam em sua segregação, em sua pobreza e em seu cenário de violência. Só experiências generosas, pessoais ou de grupos, conseguem aplacar a dor de seus moradores condenados ao destino de diferentes.

Só quem nasceu e sofreu ali, viveiro de talentos e criatividade artística, é capaz de entender a complexidade e a riqueza daquelas comunidades condenadas ao mesmo tempo ao estigma da diferença. Um dos filhos ilustres das favelas, o carnavalesco Joãosinho Trinta, cunhou uma frase, já célebre, que define o paradoxo que a idiossincrasia da favela representa: “O povo gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”. Dizia ser capaz de “transformar lixo em luxo”. Convertia restos de isopor em esculturas que pareciam de marfim.

Como já destacou o brilhante antropólogo Roberto DaMatta, os carnavais nascidos nas favelas são o resgate de séculos de escravidão e vida dura dos excluídos. Na metamorfose dos carnavais, cada um se disfarça por um dia no que sonharia ser e não consegue. Quebra tabus. Assim, Joãosinho explicava: “Peça a um jovem de favela que desfile de escravo no carnaval. Ele quer é ser rei. Escravo já é. Ele gosta é de luxo, não de miséria”. E sentenciava: “Ninguém tem o direito de dizer não ao absurdo”.

E ninguém tem o direito de transformar favelas em zoológicos aos quais se vai para ver “como são os pobres”, como sonhava meu amigo espanhol. A melhor forma de ajudar essas comunidades que acumulam anos de abandono e exploração é lutar para que deixem de ser guetos para o deleite dos turistas e possam se tornar bairros como os demais da cidade, aos quais ninguém precise visitar para saber que não trabalhadores como nós e que não têm chifres nem rabos. A verdadeira miséria não é a das favelas, mas a nossa, a incapacidade de entender que o que nos diferencia uns dos outros não é a pobreza ou a riqueza, mas a capacidade ou a incapacidade de empatia com tudo que é diferente. Todo o resto é morbidez burguesa.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_