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Pedro Paulo de Bicalho | Secretário do Conselho Federal de Psicologia

“A sociedade inteira está discutindo a ‘cura gay’. Saímos vitoriosos”

Secretário do Conselho Federal de Psicologia diz que as pseudoterapias de reorientação sexual devem seguir proibidas porque podem causar "danos psíquicos severos"

Homem levanta a bandeira LGBTQ durante o Rock in Rio, no último domingo.
Homem levanta a bandeira LGBTQ durante o Rock in Rio, no último domingo.Leo Correa (AP)

As pseudoterapias de reversão sexual, popularmente chamadas de cura gay, voltaram ao centro do debate nesta semana, após o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal, conceder no último dia 15 uma liminar que abre uma brecha para que psicólogos ofereçam este tipo de tratamento. O que está em jogo é a validade da Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que é clara ao dizer que a homossexualidade não é uma doença ou um desvio e que, portanto, psicólogos não podem oferecer a cura gay. Em sua liminar, o magistrado não anula este documento, mas altera a sua interpretação de modo que profissionais possam realizar atendimentos ou pesquisas, inclusive os relativos à reorientação sexual, "sem qualquer tipo de censura". Ou seja, "o juiz mantém viva a resolução, mas a transforma numa letra morta", explica o psicólogo Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, secretário do Conselho Federal de Psicologia, que nesta quinta-feira entrou com um recurso para tentar reverter a decisão do juiz.

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Em entrevista ao EL PAÍS na última quarta-feira, Bicalho rebate os argumentos daqueles que defenderam o posicionamento do magistrado. Explica, por exemplo, que psicólogos sempre puderam atender as pessoas com dúvidas sobre sua orientação sexual. "A resolução [do CFP] apenas coloca limites éticos e técnicos para este atendimento", aclara. Bicalho também destaca que "a cura e a reorientação não são possíveis porque a homossexualidade não é uma doença para ser curada e não é um desvio para ser reorientado". E explica que "a cura gay não apenas é enganosa", mas também causa "danos psíquicos severos". Apesar da liminar, é otimista: "Colocamos a sociedade inteira para discutir e estamos muito orgulhosos. Saímos vitoriosos dessa história toda", conclui.

Pergunta. O juiz não suspendeu a Resolução 01/99, mas alterou sua interpretação. Quais são os efeitos desta decisão?

Resposta. Este é um ponto extremamente importante. Os 23 psicólogos que entraram com a ação popular contra o Conselho Federal de Psicologia solicitavam a anulação da resolução. Esta solicitação foi parcialmente atendida. A resolução não foi sustada, mas ela foi mantida completamente descaracterizada. Neste momento em que estamos conversando, as terapias de reorientação sexual são possíveis no Brasil. Mas espero que por pouco tempo.

P. Ou seja, apesar de não ter suspendido a cláusula, a partir do momento em que ele altera sua interpretação, na prática o efeito é de anulação.

R. Sim. Ele mantém viva a resolução, mas a transforma numa letra morta. Ele descaracteriza uma resolução que coloca limites éticos e técnicos numa profissão.

"A Resolução 01/99 nunca impediu o atendimento aos homossexuais e nem a pesquisa científica"

P. Em que contexto surge a Resolução 01/99 e quais limites ela impõe?

R. Em 1990, a Organização Mundial da Saúde aponta que a homossexualidade não deveria ser considerada uma doença. Nove anos depois, o Conselho Federal de Psicologia não somente ratifica o fato de que não é doença, como também diz que não constitui um desvio. Quando se coloca que não é desvio e nem doença significa que a homossexualidade não deve ser objeto de cura e nem de reorientação. Nós só podemos reorientar aquilo está desviado de seu caminho. A partir de 1999, quando publicamos esta resolução, afirmamos que o trabalho do psicólogo junto a pessoas de qualquer orientação sexual, seja ela hetero, homo, ou bisexual, é de acolhimento. Ou seja, a resolução de modo algum impede que o psicólogo atenda essas pessoas, mas ela coloca um limite ético neste atendimento. Ela diz que a cura e a reorientação não são possíveis, porque não é uma doença para ser curada e não é um desvio para ser reorientado.

P. E o que agora está em jogo?

R. Quando o juiz solicita que o Conselho Federal de Psicologia reinterprete a sua própria resolução, ele está dizendo, a partir de uma concepção jurídica, como devemos regular aquilo que é de ordem técnica. O que ele está dizendo é como a psicologia deve entender o modo de fazer um tratamento. É uma liminar extremamente perigosa porque, em primeiro lugar, é a justiça dizendo para uma profissão regulamentada de que modo ela deve conduzir seus limites técnicos. O segundo perigo é que não existem evidências científicas de que os ditos tratamentos de reorientação sejam eficazes. Mas, por outro lado, existem muitas evidências científicas sobre a possibilidade de estrago psíquico que esse tipo de coisa produz. Pessoas que foram submetidas a este tipo de reorientação sofreram danos psíquicos severos. E a psicologia brasileira não pode, a partir desta constatação, permitir que a profissão seja usada para praticar agravos psíquicos. Por isso vamos entrar [nesta quinta-feira] com uma liminar solicitando cassar a decisão do juiz, por entender que ela ofende a Psicologia como profissão regulamentada e faz com que a população inteira esteja vulnerável a tratamentos que nós não entendemos como tratamentos

Pedro Paulo de Bicalho, durante um seminário em maio deste ano.
Pedro Paulo de Bicalho, durante um seminário em maio deste ano.Reprodução

P. Muitos vêm argumentando que, após a decisão do juiz, as pessoas homossexuais que têm dúvidas e querem conversar sobre sua orientação sexual vão poder buscar ajuda profissional.

R. Isso nunca deixou de ser possível, inclusive para pessoas heterossexuais. Até porque a sexualidade produz questionamentos para todo mundo. A ação popular que solicitava a sustação da Resolução 01/99 se baseia em duas questões bastante equivocadas. Primeiro eles dizem que a resolução impede que psicólogos atendam pessoas homossexuais. E isso não é verdade. Também dizem que a resolução impede a pesquisa científica. Isso também não é verdade, até porque o Conselho Federal de Psicologia não é capaz de censurar nenhum tipo de pesquisa. Elas são reguladas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, que é um órgão vinculado ao Ministério da Saúde com o qual não temos nenhum tipo de interlocução. A Resolução 01/99 sim impede os tratamentos que envolvem trabalhos de reorientação ou que concebem a homossexualidade como desvio ou doença. Agora, ela nunca impediu o atendimento aos homossexuais e nem a pesquisa científica.

"A primeira coisa que devemos fazer quando recebemos alguém demandando algo [como a cura gay] é colocar em análise que demanda é esta e como esta demanda se constrói na sociedade em que vivemos. Este é o trabalho do psicólogo"

P. Também argumenta-se que muitas pessoas buscam voluntariamente a cura gay, mas são censuradas. Embora muitos consigam encontrar igrejas ou grupos que prometem soluções milagrosas ou terapêuticas.

R. O limite do Conselho Federal de Psicologia é a atuação do psicólogo. Não podemos dizer o que as pessoas podem ou não fazer. As normas da Resolução 01/99 só produzem limites éticos para os psicólogos. É bastante triste que pessoas procurem este tipo de tratamento. Não temos nenhum tipo de intervenção sobre isso, mas a área de saúde não pode se prestar a este tipo de coisa.

P. Ou seja, uma pessoa pode, se quiser, buscar um tratamento considerado enganoso e inexistente. Mas não poderá recorrer a um psicólogo com registro profissional para isso, e sim a entidades ou grupos que o ofereçam.

R. Sim, mas quando você fala que um tratamento é enganoso, você está falando que ele não produz efeitos e que funciona como um placebo. Mas a cura gay não apenas é enganosa, como também produz efeitos. Só que são maléficos, são agravos psíquicos. Ou seja, ela não funciona e produz mais sofrimentos. Um dos argumentos é que os psicólogos não vão tratar qualquer pessoa, apenas aqueles que voluntariamente pedem. Por exemplo, nós psicólogos recebemos cotidianamente pessoas negras que sofrem de racismo. É muito comum que cheguem em nossos consultórios e falem 'olha, tô mal porque eu vivi uma situação de racismo'. E é legítimo que as pessoas estejam sofrendo por causa disso. Mas não podemos acreditar em momento algum que, para poder acolher este sofrimento, nós devemos produzir uma intervenção de branqueamento. Porque entendemos que o problema do racismo não é a pessoa ser negra, mas sim a sociedade ser racista. E que a gente precisa trabalhar para que a sociedade seja menos racista ao mesmo tempo em que empoderamos as pessoas negras, para que elas possam enfrentar o racismo. A questão LGBT é igual. O que faz uma pessoa pedir para deixar de ser homossexual? É porque neste país um homossexual é morto a cada dia por ser homossexual. Neste país, há pessoas que são expulsas de suas escolas e de suas famílias, que são violentadas das mais diversas formas, por causa de sua orientação sexual. Assim, da mesma forma que não é possível oferecer branqueamento para aqueles que sofrem de racismo, não é possível oferecer reorientação sexual para aquelas pessoas que querem deixar de ser homossexuais por viverem na pele a LGBTfobia.

P. Qual deve ser o trabalho dos psicólogos nestes casos?

R. A primeira coisa que devemos fazer quando recebemos alguém demandando algo é colocar em análise que demanda é esta e como esta demanda se constrói na sociedade em que vivemos. Este é o trabalho do psicólogo. Nossos sofrimentos têm historia, são atravessados por milhões de coisas. Devemos entender que o problema das pessoas que sofrem de racismo e de LGBTfobia está com elas e que, por isso, elas precisam ter seus desejos revertidos para que deixem de sofrer? Não tem cabimento. Isso é individualizar algo que não é culpa da pessoa, mas sim da sociedade. Precisamos empoderar as pessoas para que elas vivam da melhor forma possível a sua negritude ou a sua homossexualidade.

"O que faz uma pessoa pedir para deixar de ser homossexual? É porque neste país, há pessoas que são mortas todos os dias, são expulsas de suas escolas e de suas famílias, são violentadas das mais diversas formas por causa de sua orientação sexual. O problema não é a pessoa, é a sociedade"

P. Quem são os profissionais que entraram com a ação popular? Uma das psicólogas é Rozangela Alves Justino, que teve seu registro profissional cassado em 2009 e se diz uma missionária.

R. É difícil responder. São pessoas do Brasil inteiro que se organizaram em prol desta causa. Não posso falar sobre o grupo inteiro, mas acredito que tenham alguma articulação o fundamentalismo religioso. Rozangela se transformou numa pessoa midiática por conta de seu julgamento.

P. Associações psiquiátricas de todo o mundo dizem que a cura gay é prejudicial, mas o Brasil é um dos poucos países que proíbem expressamente esta pseudoterapia. Por que?

R. A psicologia não é uma profissão regulamentada em muitos países. No Brasil, ela tem se colocado como uma instância de luta política em prol de uma serie de questões. A psicologia mudou muito nesses últimos 55 anos, desde que foi regulamentada. Era uma profissão voltada basicamente para os consultórios, mas hoje ela também está presente nas políticas públicas. É todo um processo de reconstrução e de pensar a psicologia articulada com o compromisso social que fez com que pudéssemos estar na vanguarda. É bom lembrar que a Resolução 01/99 é a primeira do mundo que fala sobre isso e a que mais circula no mundo. Temos muito orgulho dela e ainda ganharemos muitos louros por causa dela. Um dos efeitos mais bacanas da liminar é que este tema foi o mais comentado do mundo nos últimos dias. A gente sai muito vitorioso desta história toda. Colocamos a sociedade inteira para discutir e estamos muito orgulhosos.

P. Então a psicologia não pretende ser neutra. Ela tem lado.

R. Sim. Ela se coloca no lado do compromisso social.

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