Um coroinha no inferno

Estimulado pelo papa Francisco, bibliotecário conta como foi abusado durante anos por um frade na Suíça

Freiras caminham na praça São Pedro, em RomaANDREAS SOLARO (AFP)

Esta é a história do coroinha que desceu até o inferno. Dos nove aos 12 anos, ele foi estuprado pelo frade capuchinho Joël Allaz, que o recrutou na catedral de Friburgo (Suíça) em um sábado de verão em 1968. Daniel Pittet, aquele menino absolutamente pobre, tem agora 58 anos, é bibliotecário e foi a em Madri para lançar o livro sobre sua vida, intitulado Le perdono, padre. Sobrevivir a una infancia rota (Eu lhe perdoo, padre. Sobreviver a uma infância interrompida, ainda sem edição no Brasil). Abrigado pelos jesuítas e pelo presidente da Conferência dos Bispos da igreja Católica, o cardeal Ricardo Blásquez, Pittet foi apresentado ao público pelo próprio papa Francisco. “Para quem foi vítima de um pederasta é difícil contar o que sofreu. O testemunho de Daniel é necessário, precioso e corajoso”, escreve o pontífice argentino no prefácio da biografia do coroinha.

Pittet se casou, tem seis filhos e escreveu um livro terrível. “Depois de dezoito anos de terapia, consigo agora usar as palavras adequadas”, diz. Além do prefácio do Papa, a autobiografia inacabada desse valoroso e culto bibliotecário suíço traz um epílogo no qual, em 30 páginas, o seu estuprador confessa de forma tenebrosa. É espantosa a quantidade de malfeitorias: ele abusou, diz, de outros 150 meninos, dos quais pelo menos oito acabaram cometendo suicídio. O padre Allaz tinha caminho livre como estuprador. Era capelão dos jovens pré-adolescentes de toda a Suíça de língua francesa e envolvia as pessoas com sua retórica. “Enquanto ele estava fazendo sermões espetaculares, eu o enxergava nu como um velho porco”, conta, agora, a sua vítima.

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Determinado a impor tolerância zero para os pedófilos protegidos em setores da Igreja Romana — acobertados por alguns bispos mais preocupados com o prestígio do que com o código penal —, Francisco se arrisca apoiando Daniel Pittet. “O menino ferido é agora um homem de pé, frágil, mas de pé”, diz. Há dois anos, incentivou da mesma maneira um jovem espanhol, também chamado Daniel (nome fictício), mas a Justiça acabou não acreditando em quem havia sido (supostamente, é preciso dizer) vítima, em Granada, de um clã de sacerdotes tolerado pelo arcebispo Javier Martínez. O juiz que conduziu o processo teve que ameaçar o prelado com a Guarda Civil pelo atraso na divulgação de documentos, que o arcebispo não fornecia com a desculpa de que precisava de aprovação do Vaticano. Como no caso suíço, na Espanha também há bispos que transferem de paróquia sacerdotes denunciados com o argumento de que os casos de pedofilia são usados para desacreditar a Igreja Católica.

Pior do que a pedofilia é o aborto, se desculpou em 2009 o cardeal Antonio Cañizares, prelado agora em Valência.

Como um menino estuprado aos 9 anos se lembra de sua primeira vez? O bibliotecário Pittet não faz concessões. “Em um sábado como todos os outros, entra na catedral um sacerdote capuchinho, o padre Allaz, para celebrar a missa. Por que ele? Sentiu o cheiro de uma boa presa. Convida-me ao convento. Quer me mostrar um melro que fala. Tenho 9 anos, é algo mágico! Sem tempo para ver o melro, me faz entrar em seu quarto. Dá uma ordem: 'Abaixe suas calças!'. Tudo acontece muito rápido. Depois, me serve uma limonada. Nenhuma palavra. Bebo em silêncio. Acompanha-me até a porta, todo sorrisos. Diz bem baixinho: ‘Vamos ter que manter tudo isso entre nós’."

A vítima de agressões sexuais diz agora: “Denunciar um abuso é um passo muito doloroso. Raramente consegue-se punir os maus e proteger os bons. Denunciar causa vergonha: uma vítima precisa de provas! Isso significa que deve deixar que o médico examine seu ânus. É abominável! Pior, como é possível provar, 10 ou 15 anos mais tarde, que você foi brutalmente estuprado? O maior risco é o suicídio. O grupo prefere salvar o clã e sacrificar a vítima”. Pittet conseguiu que acreditassem nele porque descreveu com precisão o quarto do estuprador e porque o padre “tinha uma marca chamativa no corpo”.

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