PMs, juízes, promotores e nós: o complexo ciclo da violência policial
Do Carandiru ao assassinato do carroceiro, rede de impunidade dá "carta-branca" para matadores. Uma de cada três mortes violentas em São Paulo teve policial como autor
O carroceiro Ricardo Silva Nascimento, assassinado pela polícia no dia 11 em plena hora do rush em São Paulo, não está sozinho. Além da onda de solidariedade e revolta que se seguiu ao crime, o morador de rua de 39 anos é acompanhado por uma longa lista, que já acumula apenas nos últimos dez anos mais de 5.000 nomes. Este é o total de pessoas mortas pela Polícia Militar de São Paulo no período. A maioria, ao contrário de Nascimento, que foi baleado em um bairro de classe média alta da capital, não ganhou as manchetes. São em sua maioria homens, jovens, negros, moradores da periferia e com baixa escolaridade. Policiais e especialistas ouvidos pelo EL PAÍS apontam que o PM puxa o gatilho, mas as engrenagens que fomentam a impunidade e a espiral de violência vão além da farda.
Os números da polícia em São Paulo impressionam. Entre janeiro e março deste ano, uma em cada três mortes violentas na cidade teve um policial como autor. A quantidade de vítimas da tropa no Estado aumentou 18% no primeiro trimestre deste ano comparado com o mesmo período de 2016: de 201 para 238. No ano passado as forças de segurança foram responsáveis pela morte de 856 pessoas. Para efeito de comparação, em 2016 apenas cinco pessoas foram mortas pela polícia em todo o Reino Unido. Em Buenos Aires foram 36 vítimas fatais. A região metropolitana da capital argentina, a Grande Buenos Aires, tem 13 milhões de habitantes ante os 45 milhões do Estado de São Paulo. Fazendo um exercício de aproximação, mantida a proporção argentina a tropa paulista teria matado 144 pessoas, e não 856.
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública informou que “desenvolve ações para reduzir as ocorrências envolvendo policiais que resultam em mortes, seja dos agentes ou de criminosos”. De acordo com a pasta, graças ao “emprego da tecnologia, a polícia chega cada vez mais rápido aos locais das ocorrências e, muitas vezes, se depara com a presença dos criminosos, aumentando assim as chances de confrontos”. Ainda segundo o texto, nos primeiros cinco meses de 2017 “65,2% dos confrontos com a Polícia Militar resultaram em prisão, fuga ou lesão corporal do criminoso envolvido, não havendo o resultado de morte”.
A letalidade das policias do Estado, que colecionam casos de excessos (basta lembrar do Massacre do Carandiru), acaba se voltando contra a própria instituição. “A Polícia de São Paulo é uma das que mais mata no mundo, mas também é uma das que mais morre”, afirma Guaracy Mingardi, ex-investigador da Polícia, ex-secretário de Segurança Pública de Guarulhos e ex-subsecretário nacional de Segurança Pública. “Nos casos em que existe um criminoso armado, a chance dele se dispor a trocar tiros com a tropa é muito maior porque ele sabe que se for pego pode ser morto”. Nos três primeiros meses deste ano 9 policiais perderam a vida (em serviço ou de folga) e 108 ficaram feridos em São Paulo. No Rio, de janeiro a julho, foram 90 PMs mortos. Mingardi diz ainda que apesar da alta taxa de mortos por policiais em confronto ou em situações irregulares, “a violência da policia de São Paulo não faz com que diminuísse a violência na sociedade”.
O tenente-coronel da PM Adilson Paes de Souza, que trabalhou na ativa por 30 anos, afirma que existe uma conivência dos superiores de policiais envolvidos em assassinatos suspeitos. “Falta menos conivência e mais punição. A única resposta possível a essa ação dos policiais que mataram o carroceiro seria a prisão em flagrante”, afirma o oficial. Souza lista uma série de condutas ilegais adotadas pelos policiais envolvidos na ocorrência, que “por si só”, justificariam a prisão em flagrante. “Eles não podiam sequer ter socorrido o carroceiro, existe uma resolução aprovada pelo ex-secretário de Segurança Pública do Geraldo Alckimin, o Fernando Grella, que proíbe que os PMS prestem o socorro para evitar alterações na cena da ocorrência”, diz.
Mas para Souza, culpar apenas o policial pelas “tragédias” cotidianas seria simplificar um problema complexo. “Eu vejo uma falha no Ministério Público. Cabe a ele exercer o controle externo da atividade da polícia, logo ele deveria assumir a apuração dos fatos e responsabilizar os culpados. Isso não ocorre”. No ano passado o EL PAÍS contou a história de alguns casos nos quais promotores do Ministério Público de São Paulo ignoravam evidências forenses que apontariam excessos cometidos pela tropa – e inocentavam as vítimas.
“Muitos promotores deixam de oferecer a denuncia por homicídio cometido por policiais, e quando oferecem eles relativizam a gravidade”
“Muitos promotores deixam de oferecer a denuncia por homicídio cometido por policiais, e quando oferecem eles relativizam a gravidade”, afirma Martim Sampaio, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. “E temos juízes de primeira e segunda instância que entendem que o policial que matou, ainda que fora dos parâmetros legais, realizou um serviço em prol da sociedade”. Sampaio cita como exemplo a decisão dos desembargadores Ivan Sartori, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Camilo Léllis e Edison Brandão, que votaram pela anulação do julgamento que condenou 74 PMs pelo Massacre do Carandiru.
Segundo o tenente-coronel Souza, existe ainda outra engrenagem que torna possíveis os assassinatos cometidos por PMs:a sociedade. “Em última instância, quem julga o policial matador é o tribunal do júri. Quem sentencia são os sete jurados, então não adianta apenas culpar o policial, se posteriormente o comportamento dele é premiado pela população com uma absolvição”, afirma.
Mingardi concorda com Souza, mas destaca um outro ponto da questão. “Nas listas de jurados você pode ver, é só gente de classe média: metade da população é pobre, mas se tiver um dos sete jurados pobres já é muito”, diz. Para ele, a mentalidade de que “vagabundo bom é vagabundo morto é mais facilmente encontrada na classe média”, até porque as camadas populares são as mais vitimadas por arbitrariedades da PM.
O ex-investigador Mingardi afirma que desde a criação da Polícia Militar a partir da Força Pública e da Guarda Civil durante a ditadura militar, poucas políticas públicas foram implementadas no sentido de reduzir a letalidade da tropa. “Não existe empenho de transformação da policia. Nas últimas décadas poucos Governos tentaram mexer alguma coisa”, diz. Ele cita a gestão do tucano Mario Covas, de 1995 a 2001, como exemplo de Governo que implementou práticas que “chegaram a dar resultados”, mas “não prosperaram”.
Tentativa de implantação de policiamento comunitário na cidade e a aplicação do método Giraldi são bons exemplos de políticas importantes “que não surtem o efeito desejado”
“Em 95, após o Massacre do Carandiru, havia um grande problema de violência policial, a imagem da PM no Brasil e no mundo era péssima, e eles conseguiram reverter isso em parte”, afirma. De acordo com ele, sob a batuta do governador foram “criadas políticas que tiravam do policiamento o PM que se envolvesse em tiroteios, fazia com que passassem por avaliações psicológicas... Houve um movimento nesse sentido. Mas depois o Covas morreu [2001], o secretário de Segurança Pública perdeu poder e as mudanças cessaram”.
Já Sampaio, da OAB, menciona a tentativa de implantação de policiamento comunitário na cidade e a aplicação do método Giraldi (que disciplina o uso da força e busca minimizar as mortes em abordagens), como bons exemplos de políticas importantes “que não surtem o efeito desejado”.
Os cinco policiais militares que participaram do assassinato do carroceiro Nascimento foram afastados de suas atividades nas ruas, e realocados para serviços administrativos. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública informou que a Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa instaurou um inquérito para analisar o caso. “Impunidade. Esta é a palavra. Os crimes praticados por PMs, em sua grande maioria, caem na impunidade. Mesmo quando vai a tribunal de júri, a maioria resulta em absolvição, na maioria das vezes por falta de provas”, diz Souza. “Isso é uma carta branca para novos crimes”.
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