Não em meu nome: filhos de torturadores argentinos repudiam seus pais
Familiares de repressores se reúnem em grupos que rejeitam os crimes e exigem cumprimento de pena
Suas reuniões são duras. Uma espécie de terapia coletiva. A maioria está há anos sem compartilhar seu segredo e tem muita vontade de falar. Precisam desabafar. “No começo foi uma catarse. Acabamos chorando quase todos. Arrastamos uma cultura muito arraigada que nos diz ‘Honrarás o teu pai’. É muito difícil romper com isso”, conta María Laura Delgadillo, uma das fundadoras do Histórias Desobedientes, um grupo que vem comovendo a Argentina – um país já bastante habituado a relatos terríveis sobre a última ditadura militar (1976-83). Mas este é diferente, porque vem de dentro para fora. São os filhos dos repressores que se rebelam contra seus pais e se reúnem para exigir que eles não saiam da cadeia, que cumpram suas penas de prisão perpétua.
Durante anos, o mundo da repressão numa das piores ditaduras do planeta se dividia em dois, como os espaços dentro dos julgamentos de crime contra a humanidade: de um lado, os repressores e suas famílias; de outro, as vítimas e seus parentes. Mas isso acabou no dia em que este pequeno grupo, formado sobretudo por mulheres – no começo meia dúzia, hoje mais de 50 –, foi a uma manifestação com um cartaz que dizia: “Filhos e filhas de genocidas pela memória, verdade e justiça”.
Lá estava Analia Kalinec, filha de Eduardo Kalinec, o Doutor K., um conhecido repressor que cumpre pena de prisão perpétua. Também Erika Lederer, filha de Ricardo Lederer, um obstetra que ajudou a parir boa parte dos filhos de desaparecidas e que se suicidou em 2012 ao ver que seria condenado. Erika teve a coragem não só de criar este grupo como também de se encontrar com o neto 106 das Avós de Praça de Maio, a quem o pai dela havia ajudado a entregar a uma família leal à ditadura. A assinatura de Lederer na falsa certidão de nascimento foi a sua condenação. Erika, também vítima do seu pai, que a maltratava, queria saber como podia ajudar Pablo, o neto cuja vida Lederer havia arruinado.
Todos arrastam histórias assim, por isso suas reuniões são difíceis. “Alguns de nós só recebemos carícias de uma mão contaminada pela tortura”, contou um deles na última reunião. Muitos sofrem consequências físicas de tanta tensão, adoecem. Eles têm apoio de psicólogos para que consigam contar suas histórias. Todos já passaram dos 40 anos, alguns chegam a 60, e seus pais estão morrendo. O que mais os angústia é que se aproximam do fim da vida sem contar nada, sem dizer onde estão os desaparecidos.
Porque o grande sonho de muitos destes filhos é convencer os seus pais a se arrependerem e a ajudarem a encontrar os corpos dos desaparecidos, ou os netos vivos e ainda sem recuperar. “Queremos romper o pacto de silêncio que há entre eles. Nas famílias às vezes há dados que podem reconstruir a história. Se conseguirmos reuni-los, podemos ajudar outras vítimas”, diz María Eugenia Vergera, outra integrante do grupo, que tem uma dupla condição: é sobrinha de um repressor e esposa de um desaparecido.
O sonho seria que os filhos conseguissem convencer os pais. Mas eles não se iludem, e isso atualmente parece impossível. O pacto de silêncio dos repressores resistiu. Ninguém se arrependeu nem deu uma só informação sobre uma vala comum. Nem sequer perante seus filhos. Liliana Furió, filha de um conhecido repressor de Mendoza, condenado a prisão perpétua em 2013, tentou muitas vezes. Até que ele lhe gritou: “Não se fale mais nisso, se eu tivesse que voltar a colocar o capuz, voltava”. Agora ele está senil, e ela o visita em sua prisão domiciliar. Alguns têm relação com seus pais, outros não. Muitos já morreram.
“Meu pai morreu discutindo comigo”, conta Walter Docters. O pai era um repressor, e o filho passou vários anos presos por lutar contra a ditadura. Mas não o mataram justamente por seu sobrenome, porque Echecolatz, que dirigia a repressão na província de Buenos Aires, prometeu ao pai dele que o salvaria. “Era de ideologia nazista, era arquiteto e trabalhou com Echecolatz no projeto dos lugares onde mantinham os presos. Eu militava no ERP, mas ele conseguiu que não me matassem.” Também lhe pediu muitas vezes que confessasse, sem sucesso. “Ele me dizia: ‘Você tem os seus companheiros, eu tenho os meus. Eles te mantiveram com vida, cumpriram, não irei contra os rapazes.”
Foi justamente o comovedor depoimento da filha de Echecolatz, publicado na revista Anfíbia, que impulsionou muitos destes filhos a se unirem. Alguns já tinham aparecido com suas histórias no livro Hijos de los 70 (“filhos dos anos setenta”), de Carolina Arenes e Astrid Pikielny, um texto tocante. Mas Mariana, que já não usa o sobrenome Echecolatz, porque o alterou, remexeu muitas coisas ao contar o horror de ser filha desse monstro, que o era também dentro de casa, como muitos deles – mas nem todos, pois alguns se comportavam como pais muito carinhosos.
Querem justiça. Exigem que seus familiares não recebam um benefício, o chamado dois por um (dois dias de pena computada a cada dia passado em prisão preventiva) que colocaria muitos na rua. Alguns têm horror à ideia de que seus pais fiquem em liberdade.
Outros, como Delgadillo, cujo pai morreu sem condenação, agem motivados pela necessidade de fazer algo que repare um dano que nem sequer conhecem plenamente. “Meu pai era delegado de polícia. Um dia encontrei um capuz entre suas coisas. Algumas vezes ele trouxe roupas, sapatos, um relógio e um microscópio de suas operações. Minha mãe sempre nos proibiu de tocar essas coisas. Queimou tudo, menos o microscópio. Era muito violento, nos batia com um cano. Minha mãe tentou se suicidar entrando num quartel à noite, para que meu velho visse como eram seus colegas, mas não atiraram nela.”
Outros conhecem em detalhes os crimes de seus pais, já os leram nas sentenças judiciais, ouviram os depoimentos das vítimas. E acham difícil viver com esse peso. Por isso se reúnem. Estão recebendo mensagens de todo o mundo, e no Chile alguns filhos de repressores querem organizar algo semelhante. Todos querem gritar o mesmo: não em meu nome.
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