Nova procuradora Raquel Dodge enterra fantasma do “engavetador da República”, avaliam juristas
Indicação é vista com otimismo por juristas ouvidos pelo EL PAÍS. Embora segunda na preferência dos procuradores, é especialista em combate à corrupção
O presidente Michel Temer tinha a caneta para escolher quem quisesse para suceder seu algoz, Rodrigo Janot, na Procuradoria Geral da República, que o denunciou por corrupção passiva. Quebrou o acordo não escrito, que vigora desde 2003, de indicar o primeiro da lista tríplice – três nomes mais votados em eleição da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Mas, indicou a segunda, Raquel Dodge, prestigiando a categoria e o anseio da sociedade de ter alguém perfilado na missão de combater a corrupção. Temia-se que ele indicasse alguém de fora da lista da ANPR, que trouxesse letargia à investigação e beneficiasse investigados como o próprio presidente. Temer poderia fazê-lo, mas não o fez.
Só esse fato já é motivo para o Ministério Público soltar rojões, avalia o juiz Ali Mazloum. “É alguém da lista, a despeito de o presidente não estar obrigado a escolher um nome de lá”, afirma. Como ele, juristas e ex-procuradores ouvidos pelo EL PAÍS elogiam a eleição de Dodge num momento delicado da PGR. Rodrigo Janot, que deve deixar o cargo em setembro, ganhou papel de liderança de uma das mais ambiciosas operações de combate à corrupção do Brasil, a Lava Jato, que denunciou pela primeira vez na história do país um presidente da República em atividade. Mas sua atuação, por vezes considerada “midiática” colocou a Procuradoria em rota de colisão com o poder Legislativo e até mesmo com alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, em especial, Gilmar Mendes.
Na noite de terça-feira os integrantes da ANPR elegeram uma lista tríplice de onde, segundo se convencionou, o presidente deve escolher o sucessor de Janot, cujo mandato vai até setembro. O mais votado foi Nicolao Dino, atual vice-procurador-geral eleitoral e aliado de Janot, mas foi a procuradora Raquel Dodge a indicada por Temer. Dodge é procuradora desde 1987 e atuou em casos como o do "deputado da motossera" Hildebrando Paschoal e o Esquadrão da Morte. Ela é mestre em direito pela Universidade Harvard. Desde 2008, ela cuidava de processos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) como o do ex-governador José Roberto Arruda, que foi preso na Operação Caixa de Pandora que teve participação dela.
Acuado por denúncia de corrupção passiva apresentada na terça – outras devem ser protocoladas em breve -, o presidente optou por uma saída honrosa. Não fez o gosto de Janot, que estava alinhado com Dino, e não descartou a proposta da ANPR.
A ex-corregedora de Justiça e ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça Eliana Calmon conhece bem a nova procuradora e por isso, avalia que a escolha de Dodge foi mais do que acertada. “Ela é um bálsamo para o momento atual do Ministério Público, tenho certeza que fará uma gestão muito equilibrada”, afirma ela, que torcia por um perfil “menos político e mais técnico” para este novo ciclo da procuradoria. Calmon não esconde que temia a indicação de Nicolao Dino, primeiro na lista tríplice escolhida pelos).
Para Calmon, Dino corria o risco de tomar um caminho mais político num momento em que há tensão nas relações com outras instituições, num claro clima de polarização, que compromete, a seu ver, a credibilidade do Ministério Público. “Hoje estamos num momento crucial. Com todos os acontecimentos atuais, precisamos de um equilíbrio”, opina. Ela não acredita que uma atitude mais discreta do MPF possa fazer com que a Lava Jato seja abafada pelo Legislativo. Os parlamentares lutam para não ser engolidos pelos processos originados das delações premiadas - que falam de crimes que vão de caixa 2 a corrupção. “A agressividade do procurador não influi na operação. O que influi são as atitudes no sentido de requerer, apresentar provas, insistir nas investigações”, diz a ex-ministra para quem Dodge poderá “aparar arestas”. E destaca um ponto que marca a carreira da nova procuradora: o combate à corrupção, uma demanda cara da sociedade brasileira que não volta mais atrás.
Fabrício Medeiros, professor de Direito Constitucional do Centro Universitário de Brasília, vai na mesma linha. “A nova procuradora é ferrenha defensora de combate à corrupção, com muito equilíbrio”, elogia. Assim, o nome de Dodge chega num momento em que não há margem para erros. “[A indicação] precisava atender à necessidade única e histórica de se investigar a fundo o que existe, mas com a responsabilidade que o cargo demanda, para não deturpar os fatos ou investir contra as instituições”, completa Medeiros.
Outro jurista que elogia Dodge é José Paulo Sepúlveda Pertence, ex-procurador-geral da República e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, que presidiu a banca do ingresso de Dodge no Ministério Público. Pertence diz que a nova procuradora é uma “mente brilhante”. “Não acompanho hoje seu desempenho pormenorizado, mas espero que ela mantenha sua trajetória com a firmeza e o equilíbrio que o cargo condiz”, afirma. Para ele, Janot teve um papel “seguro” na chefia do MPF, e “comandou a instituição durante uma fase difícil do país”. Mas o jurista, que atualmente defende investigados na Operação Lava Jato, faz menção ao que chama de “excessos evidentes, ainda que de certo modo inevitáveis” na atuação da procuradoria-geral com relação à condução do escândalo de corrupção da Petrobras. Segundo ele, isto seria provocado pela influência das “alas mais jovens” do MP. “Todo o poder novo corre o risco de cometer certos abusos e se deixar levar por certos entusiasmos”, afirma.
Após a nomeação da procuradora, começaram as especulações sobre a linha de atuação da nova integrante do Ministério Público para manter a operação e, ao mesmo tempo, atenuar os petardos que chegam a quem assume esta posição de vidraça. Antes de ser eleita, no entanto, ela já havia assumido alguns compromissos. “Os atuais membros da Força-Tarefa da Lava Jato de Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e outras forças-tarefas serão encorajados a permanecer, vez que a composição de cada FT é escolhida pelo promotor natural, titular do ofício, e assim deve continuar”, tratou de esclarecer, em um hot site criado por ela, para fazer campanha por sua eleição ao cargo de procuradora.
Os juristas ouvidos pela reportagem afirmam que no Brasil de hoje não há mais lugar para um “engavetador-geral da República”, apelido pejorativo dado a Geraldo Brindeiro, que ocupou a chefia do Ministério Público Federal nos anos noventa. O rótulo colou pois ele não levava investigações adiante, trancando-as na gaveta. “Alguém nesse perfil será massacrado! A população brasileira está de prontidão”, diz Eliana Calmon. Por outro lado, era preciso evitar alguém com um perfil de “falador-geral”, menção feita por alguns ao atual procurador-geral. “Não é papel do PGR criar esse clima de guerra e enfrentamento com as outras instituições”, diz Ali Mazloum.
André Bezerra, juiz de direito e membro da Associação de Juízes para a Democracia afirma que “a atuação do chefe do MPF reflete a atuação da base”. “Eu espero que, com base nisso, o próximo procurador-geral mantenha esse alinhamento”, diz o magistrado, crítico de alguns dos métodos usados pela Lava Jato com o aval de Janot, como as prisões preventivas por tempo indeterminado e os afastamentos de parlamentares de seu mandato. “Tenho restrições a isso, o Judiciário tirar ou suspender o mandato de parlamentares é algo bastante complicado do ponto de vista democrático”. No final de 2015 Janot pediu o afastamento do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). A solicitação foi aceita pelo STF em maio de 2016.
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