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Karl Ove: “Minha luta é escrever ao mesmo tempo que viver a vida cotidiana”

Escritor norueguês apresenta ‘A Descoberta da Escrita’, quinto volume de sua infernal memória

O escritor Karl Ove Knausgård em Barcelona
O escritor Karl Ove Knausgård em BarcelonaALBERT GARCIA

O elegante paletó cinza escuro, a camisa azul céu e o informalmente arrumado cabelo grisalho o depuram um pouco, mas o rosto de Karl Ove Knausgård é o de alguém que passou pelo pior dos infernos, o interior, em um duelo com a vida para ser feliz, amar e ser amado e tornar-se um escritor temendo que jamais conseguirá nada. Está há mais de três mil páginas fazendo a crônica dessa batalha e, do papel, parece que ganhou. Ou não. De qualquer modo, tampouco fica claro na vida real, segundo se desprendeu em uma palestra em Barcelona, aonde esteve como parte do lançamento (em junho na Espanha e esta segunda-feira no Brasil) do quinto volume de Minha Luta, ambicioso e ultraconfessional projeto autobiográfico: A Descoberta da Escrita (Companhia das Letras).

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Karl Ove (Oslo, 1968) é, nessas quase 700 páginas, o dos seus anos loucos entre os 20 e os 34, seu fracasso na escola de escrita, sua celebração convulsiva com aquela que será sua primeira esposa, Tonje, sua relação de amor-ódio com o irmão (enfia um vidro no rosto dele porque acha que a menina o olha mais do que a ele) e o domínio tácito do pai. Tudo com a nudez e crueza características. Talvez, contado assim, o vivido se torne mais real. “Não necessariamente”, argumenta. “Escrevi sobre o meu pai em um romance anterior aos volumes autobiográficos e não funcionou: não me pareceu autêntico e verdadeiro, tudo tinha de ser mais real; não encontrei a linguagem quando essa busca é mais importante do que os fatos em si”. Quase 3.000 páginas depois, o pai continua lá: “Tudo o que foi escrito é uma luta entre a ideia que tenho do meu pai e eu; no fundo, o eixo da série é a identidade, como somos e por que somos como somos; enquanto para alguns a crise dos 40 os leva a comprar um caiaque ou a fazer caminhadas, a mim ela me levou a escrever e me livrar de ser filho para ser pai”.

É em A Descoberta da Escrita onde emerge mais uma das batalhas do autor norueguês: a vontade inabalável de escrever. “O escritor definitivamente se faz, não nasce; eu queria ser escritor a todo custo e não conseguia: lia muito, tentava absorver as experiências de vida dos autores, mas, em seguida, ao plasmar isso, ao escrever, saia algo alheio, distante de mim; o que estava no papel não me representava... A chave é você desaparecer e depois que o que você escreveu volte a você; é nesse ponto que você se faz escritor”.

Para atingir esse grau, Karl Ove não hesitou em ignorar se podia prejudicar os outros ou não. “Você tem de prescindir disso”, admite, puxando a ponta do colarinho. “Os dois primeiros livros eu escrevi sozinho, no quarto; e fui ingênuo: pensei que colocaria o que tivesse vontade porque acreditava que o que iria fazer não interessaria a ninguém; escrevi como se não houvesse consequências... mas houve e transformaram minha vida literalmente num inferno; não sabem até que ponto; isso fez com que nos livros posteriores eu deixasse coisas de lado; mas no sexto volume, Nomes e Números, voltei à dureza de quando as coisas doem; toda liberdade criativa requer que você tenha algo de autista”.

A memória pessoal cobrou seu preço na vida pessoal: o autor está em processo de se divórcio de sua esposa e mãe de seus quatro filhos, Linda, que fica especialmente em má situação em seus livros. E sua vida tem de tudo, menos privacidade. “Afrouxou, mas nos diários chegava a falar se eu tinha cortado o cabelo ou comprado uma casa; foi um verdadeiro choque no meu sistema de vida, mas quando você abre as portas de si mesmo faz o mesmo em sua vida privada, e então a fronteira é complexa. Se você defende escrever sem limite algum é difícil situar o limite; mas não leio quase nada ao meu respeito, é como se falassem mal de um personagem de quadrinhos”, se defende. E como reagiria se seus filhos escrevessem como ele fez em relação a seu pai? “Seria um fracasso se eles escrevessem porque só os fracassados se tornam escritores; mas não vou entrar nesse jogo de que o que contam nunca aconteceu ou não foi assim”, resume por experiência própria.

Ele diz (e escreve) que tem memória ruim, mas cada página o desmente pela infinidade de detalhes que as povoam. “As coisas estão na sua cabeça e ao escrever você as recupera; escrever não deixa de ser uma viagem interior a sua mente e sua cabeça: todo livro é mais sobre recordações de fatos do que sobre os fatos em si...”. O que é, então, o difícil? “A luta para alcançar esse objetivo de escrever enquanto se vive a vida cotidiana; meu problema é que a vida, ao meu redor, se desvanece; não estou onde estou; com um livro tento fixar a plena consciência do aqui e agora... Acabo de terminar um sobre coisas que tinha dentro de um raio de não mais de 10 metros de mim, como uma escova de dente; todo objeto tem camadas e camadas de sentido; isso é escrever: decidir para onde olhar”, diz. E o faz precisamente, em um gesto que repetirá várias vezes, depois de passar alguns segundos dirigindo, de cabeça baixa, seus olhos azuis para o nada.

No fundo, escrever serviu para Karl Ove exorcizar seus fantasmas? “Não no básico; meus medos fundamentais não mudaram; duvido que identificá-los seja superá-los; entender te ajuda a perdoar e hoje eu me perdoo mais, mas não acredito na escrita terapêutica: ler, assim como escrever, te ajuda somente durante o tempo em que está fazendo isso, mas depois as coisas continuam iguais; é por isso que continuo a escrever”, diz depois de beber a terceira garrafa de água, como se devesse apagar um incêndio interior. Seu rosto está na capa da edição espanhola, como em quase todas as edições internacionais (não na brasileira). “É irônico: minha foto como se fosse uma marca, uma máscara, justo quando tento fazer todo o contrário”. Mas ela reflete a passagem pelo inferno.

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