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Igreja argentina reabre feridas da ditadura ao falar em “reconciliação”

Bispos convidam vítimas da ditadura e de grupos armados de esquerda e provocam críticas ferozes

Carlos E. Cué
Missa de abertura da 113ª Assembleia da Conferência Episcopal Argentina.
Missa de abertura da 113ª Assembleia da Conferência Episcopal Argentina.CEA

A memória trágica dos anos 1970 e da ditadura volta a inquietar a Argentina. A Igreja do país, estreitamente ligada ao papa Francisco, que a dirigiu antes de ser pontífice, colocou o dedo nessa ferida e recebeu duras críticas. A Conferência Episcopal argentina está promovendo uma tentativa de “reconciliação” a que as vítimas da ditadura responderam com dureza: Que reencontro pode haver se os militares nem mesmo pediram perdão ou explicaram onde estão os desaparecidos? – perguntam-se.

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O papel da Igreja argentina durante a ditadura é um assunto especialmente sensível que sempre complicou sua imagem. A maioria dos bispos apoiou os militares, que eram católicos praticantes. Nunca os condenaram publicamente. Havia padres nos centros onde se cometiam as piores atrocidades. Mas também houve religiosos que sempre condenaram a ditadura e ajudaram os que lutavam contra ela.

Agora a Igreja argentina, encorajada pelo Papa, tentava melhorar sua imagem com a promessa de abrir seus arquivos para que se conheça melhor a história sombria da ditadura. Mas o simples uso da palavra “reconciliação” no contexto de uma assembleia plenária da Conferência Episcopal para a qual foram convidadas vítimas da ditadura e vítimas de organizações armadas de esquerda, colocando-as no mesmo nível, provocou críticas ferozes.

“É um absurdo”, sentencia Estela de Carlotto, líder de Avós da Plaza de Mayo. “Como os pais das vítimas vão se reconciliar com aqueles que fizeram desaparecer seus filhos ou netos que ainda não se sabe onde estão?” – pergunta o prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel.

Em uma posição mais moderada, Graciela Fernández Meijide, mãe de um desaparecido com uma longa trajetória política no campo dos direitos humanos, decidiu ir à reunião organizada pela Conferência Episcopal, em que os bispos ouvirão seu testemunho e o de alguns filhos de militares assassinados pelo Montoneros ou pelo ERP, as duas grandes organizações armadas, mas considera a reconciliação impossível. “Eu já falei com o Papa em Roma sobre esse assunto. Perguntei-lhe o que queria dizer com reconciliação e ele admitiu para mim que os que cometeram crimes devem cumprir suas sentenças. Não pode haver reconciliação enquanto os militares que deram um golpe de Estado não pedirem perdão. Parece que não precisam, porque não pedem. Em todos esses anos, nenhum deles o fez. Tiveram muitas oportunidades e nunca disseram onde estão enterrados os desaparecidos, nem ‘lamento o dano que causamos à sociedade’”, diz ao EL PAÍS.

O movimento da Igreja gerou tanta polêmica que os próprios bispos estão tentando minimizar a iniciativa. A Conferência Episcopal afirma que, por enquanto, só se trata de ouvir as vítimas para, a partir daí, ver como o processo evoluirá nos próximos meses. Mas é evidente que essa é uma decisão de fundo tomada por um episcopado em contato permanente com o Papa.

José María Arancedo, presidente da Conferência Episcopal, citou Bergoglio para defender a aposta na reconciliação. “Estamos acostumados a uma cultura de confronto, violência e anomia que nos enfraquece como nação. Francisco nos recorda que ‘a nova evangelização encoraja todo batizado a ser instrumento de pacificação e testemunho fidedigno de uma vida reconciliada. É hora de saber desenhar, em uma cultura que privilegie o diálogo como forma de encontro, a busca de consensos e acordos, mas sem os separar da preocupação por uma sociedade justa, memoriosa e sem exclusões”.

“A pressão dos militares é muito forte, há muita gente na prisão que quer, pelo menos, passar para o regime domiciliar. Há muitos movimentos e a Igreja parece ter sido sensível a eles”, diz Fernández Meijide, muito cética quanto às possibilidades desse processo.

Na Argentina, exemplo mundial na perseguição aos repressores – foram mais de 2.000 indiciados e 700 condenados nos últimos anos, depois que se abandonou a política de indulto promovida por Carlos Menem nos anos 1990 – existe um consenso muito amplo contra a ditadura. E uma rejeição muito forte à chamada “teoria dos dois demônios”, isto é, pôr no mesmo nível os militares que organizaram a repressão e utilizaram o aparelho do Estado e os guerrilheiros que lutaram contra eles na clandestinidade. Mas também há uma exigência de parte importante da sociedade para que se condene a violência que esses guerrilheiros perpetraram nos anos anteriores à ditadura.

O que a maioria dos argentinos não parece aceitar é a ideia de uma reconciliação enquanto os militares continuarem sem ajudar a encontrar os desaparecidos e seus filhos. Mais de 300 avós ainda procuram seus netos, entregues ilegalmente a famílias próximas à ditadura. Meijide deixa claro: não é o momento. “Agora não é possível. A reconciliação, se houver, ficará a cargo de outras gerações. Melhor nos ocuparmos do problema de verdade que temos com 33% de pobreza”.

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