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Kony não interessa a mais ninguém (nem a Justin Bieber)

EUA abandonam busca pelo sanguinário rebelde ugandês, protagonista de uma das grandes campanhas virais da Rede em 2012

ÓSCAR GUTIÉRREZ
O líder do Exército de Resistência do Senhor, Joseph Kony, em uma foto datada de julho de 2006, no norte de Uganda.
O líder do Exército de Resistência do Senhor, Joseph Kony, em uma foto datada de julho de 2006, no norte de Uganda.AP

“Tenho certeza de que não podem matá-lo”, dizia o capitão Sunday lá pelo ano de 2006, em um dos últimos documentários sobre o líder rebelde ugandês Joseph Kony. Pelos gestos, o guerrilheiro, nervoso e um pouco bêbado no filme da produtora Journeyman Pictures, parecia mais falar de um deus do que de um dos homens mais procurados da África nos últimos 30 anos. Mas ninguém tirou a razão daquele capitão Sunday porque Kony, chefe do sanguinário Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla em inglês), continua vivo em algum remoto esconderijo entre o Sudão do Sul, a República Centro-Africano e o Congo. Nesta semana, além disso, os cerca de 100 boinas verdes norte-americanos (forças especiais) destinados à região para caçar Kony começaram a retirada. Também começaram a desmantelar o contingente de 2.000 soldados ugandeses que seguia a pista do LRA. Kony, de 56 anos, ainda à frente de cerca de 100 homens, já não interessa; não é uma ameaça cinco anos depois que a campanha viral – talvez a primeira grande campanha viral da Rede – lançada por uma organização norte-americana, Invisible Children, colocou no mapa o já veterano fundamentalista dos Dez Mandamentos bíblicos.

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Precisamente sob o selo da Invisible Children e da organização The Resolve existe um projeto que monitora os movimentos do LRA. Este é o mais recente, datado de 23 de abril de 2017: “Forças do LRA atacam a comunidade de Bangassou Zakara, a 25 quilômetros ao norte de Zemio (República Centro-Africana). Os assaltantes falam acholi [língua da comunidade ugandesa em que nasceu a guerrilha]. Portam armas de tipo AK [fuzis automáticos]. Levaram comida e equipamentos de comunicação e sequestraram seis civis (duas mulheres e quatro homens)”. Com este, já seria quase meia centena de ataques vinculados aos homens de Kony até agora neste ano na região, entre o sudeste da República Centro-Africana e o norte do Congo. Teriam sido mortas 3 três pessoas e 154 teriam caído prisioneiras.

Isso mostra que a atenção e o pavor despertados por Kony desabaram, pois a própria organização The Resolve, uma das que mais trabalhou para informar nos últimos cinco anos sobre os rebeldes do místico e implacável Kony, fechou no fim de janeiro. Não havia muito mais o que fazer. De acordo com dados da ONU, os 30 anos de guerra particular do LRA ao Governo ugandês de Yoweri Museveni – a guerrilha defende um governo baseado na interpretação rígida dos Dez Mandamentos bíblicos – fez ao menos 100.000 mortos. Cerca de 60.000 pessoas foram sequestradas. Muitas delas eram crianças e se tornarem soldados à força, drogados para combater e matar até mesmo membros da própria família. E tudo sob o feitiço fundamentalista dos 10 mandamentos seguidos na ponta da faca pela guerrilha.

O LRA já tinha feito tudo isso quando a Invisible Children levou à Internet uma campanha (# Kony2012), certamente criada para causar forte impacto, que apelava às redes sociais para dar a conhecer ao mundo o selvagem líder do LRA e assim contribuir para sua captura. O vídeo que acompanhou a iniciativa, simplista como reconheceram ONGs pró direitos humanos, repórteres e analistas especializados em Kony, logo alcançou mais de 100.000 visualizações no YouTube. Celebridades como Oprah Winfrey, Angelina Jolie e Lady Gaga amplificaram o impacto da gravação. Mas quem sem dúvida levou o prêmio de porta-voz improvisado foi o cantor Justin Bieber. Sua mensagem para o hashtag #stopkony atingiu mais de 27.000 retuítes em pouco tempo.

De 2.000 a 100 rebeldes

O que muitos cidadãos norte-americanos não sabiam na época é que o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, já tinha enviado em 2011 o primeiro grupo de conselheiros, forças especiais, para ajudar com assistência militar e tecnológica na caça a Kony, liderada pelo exército ugandês – Uganda é um aliado notável dos Estados Unidos –, mas da qual também participaram com mais ou menos dedicação soldados congoleses, sul-sudaneses e centro-africanos. Daqueles 2.000 homens que o LRA chegou a ter restam agora apenas cerca de uma centena. Muitos deles se movimentam pelo leste da República Centro-Africana, aproveitando a guerra iniciada em 2012 entre milícias cristãs e muçulmanas nesse paupérrimo país. Kony continua desaparecido.

No documentário, a Journeyman Pictures situa o líder do LRA e a tropa que recebe os repórteres em algum ponto na geografia de Uganda, de acordo com o mapa que estende um dos guerrilheiros em plena floresta. Corria o ano de 2006. Oito anos depois, a maioria dos analistas consultados por este repórterdurante uma viagem à capital do país, Kampala, situava Kony em Kafia Kingi, um pedaço de terra entre o Sudão e o norte do Sudão do Sul. Demasiado escorregadio e pouco perigoso para a atual Administração norte-americana. De acordo com uma informação do The New York Times, entre as perguntas feitas pela equipe de Donald Trump ao Departamento de Estado em janeiro, antes da posse, havia a seguinte: “Tentamos caçar Kony durante anos, vale a pena o esforço? O LRA nunca atacou os interesses norte-americanos, por que nos preocupa? Vale a pena a enorme quantidade de dinheiro gasto?”.

Estima-se, conforme informa a agência France Presse, que a missão de busca e captura de Kony, sob sanções da ONU e dos próprios EUA, custou aos cofres de Washington entre 600 e 800 milhões de dólares (entre 1,906 bilhão e 2,541 bilhões de reais). Mas ele continua livre e reclamado pela justiça internacional. Ainda pesam contra ele as acusações apresentadas em 2005 pelo Tribunal Penal Internacional para sua prisão: crimes contra a humanidade, assassinato, estupro, escravidão e escravidão sexual; crimes de guerra, tratamento cruel de civis, ataque deliberado e direto contra civis, saques e recrutamento forçado de menores.

O capitão Sunday diz no documentário da Journeyman Pictures que Kony, seu chefe, tem três almas. Quando o repórter, escoltado pelo então vice-presidente do Sudão do Sul, Riek Machar –hoje no exílio depois do duro conflito em seu jovem país– está finalmente na floresta com o sanguinário líder rebelde, vestindo uma camiseta, calças de camuflagem e galochas, Kony diz diante da câmera que realmente tem muito mais almas. E que cada uma lhe diz o que fazer e para onde ir a cada momento. Continua em paradeiro ignorado.

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