Israel se fecha em suas fronteiras e tenta silenciar as ONG pacifistas
Bateria de leis do Governo direitista de Netanyahu ameaça a liberdade de expressão dos dissidentes
Dois anos depois das eleições que desembocaram na formação do Governo mais direitista da história de Israel, uma bateria de reformas legais ameaça amordaçar os dissidentes, em especial as das ONGs pacifistas e grupos que aspiram a ser a consciência crítica do Estado judaico sobre a ocupação de territórios palestinos, prestes a completar meio século. A última amostra dessa legislação restritiva foi moldada esta semana com a aprovação pela Knesset (Parlamento) de uma emenda que nega visto de entrada no país de estrangeiros que pedem o boicote de Israel ou dos assentamentos judaicos.
“Nós somos contra qualquer boicote, mas constatamos que o Governo de Benjamin Netanyahu pôs em andamento um processo de deslegitimação de quem não pensa como o poder”, argumenta Avner Gvaryahu, destacado integrante do Breaking the Silence (BTS), uma organização de soldados veteranos israelenses que denuncia abusos cometidos pelo Exército. A BTS programou no ano passado a turnê por Israel e Palestina do Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, que resultou na série de reportagens “Estragos da ocupação israelense”, publicada por EL PAÍS. “Querem nos impor a lei do silêncio”, alerta este antigo militar, que em 2015 apareceu em um vídeo de acusações às ONG divulgado no Facebook por grupos da ultradireita. Desde então sofre ameaças.
O ministro da Segurança Interna, Gilad Erdan, do partido Likud, de Netanyahu, sustenta que “cada país tem o direito de determinar quem atravessa suas fronteiras”. “Nos últimos anos aumentaram os chamados ao boicote a Israel. Esta é uma nova frente em uma guerra que até agora o país não tinha abordado convenientemente”, dizia a página da Knesset na Internet, após a aprovação da lei.
Depois de uma política de décadas de convites de visita ao país para figuras das artes e esportes, bem como líderes da opinião pública, para promover a imagem de um Israel que aspira a ser moderno, inovador e democrático, o Governo de Netanyahu parece agora encastelar-se. A medida de veto nas fronteiras não foi criticada só pela esquerda, mas também recebida com inquietação entre setores políticos moderados em razão das consequências negativas que poderá ter para os interesses internacionais do país.
The Jerusalem Post, um jornal de perfil conservador e habitualmente próximo do Governo de Netanyahu, questionou em um editorial uma norma que, “em razão de sua ambiguidade, tem o potencial de causar mais danos que fazer bem” ao Estado judaico, deixa a decisão de fechar as portas do país em mãos de “funcionários de baixo escalão” e “envia a mensagem errada de que existe algo a ocultar”. O deputado da União Sionista (centro-esquerda) Manuel Trajtenberg, de origem argentina, considerou que um “compromisso construtivo” com os grupos favoráveis ao boicote é opção mais razoável para lidar com a questão.
Paradoxos da lei
Com essa legislação em mãos pode ocorrer o paradoxo de que um judeu norte-americano ou espanhol contrário à ocupação e que tenha assinado um manifesto contra os produtos exportados das colônias judaicas na Cisjordânia – algo comum na ala mais liberal da diáspora – seja rechaçado no Aeroporto Internacional Ben Gurion, de Tel-Aviv, se viajar como turista. Mas se quiser emigrar sob o amparo da lei do retorno, que concede a nacionalidade aos judeus que queiram assentar-se em Israel, o mesmo agente de fronteiras estará obrigado a permitir sua entrada.
Nos últimos meses entrou em vigor um conjunto de reformas legislativas, como a da declaração das fontes externas públicas de financiamento, que é vista pelos setores progressistas da sociedade civil como uma operação política estruturada para anular as vocês críticas. Acreditam que o objetivo final seja restringir as atividades das mais de 70 ONGs israelenses que questionam a política do Governo sobre os assentamentos e denunciam os abusos cometidos. Este é o caso da B’Tselem, que divulgou há um ano o vídeo que mostrava um soldado israelense que matou com um disparo na cabeça um atacante palestino que jazia gravemente ferido em Hebron (sul da Cisjordânia). O militar foi julgado e condenado por homicídio a uma pena de 18 meses de prisão.
Impedir a entrada de quem se tenha pronunciado a favor do movimento de boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) ao Estado de Israel – ou a “uma área sob seu controle”, em uma clara alusão às colônias – não muda a situação de fato. As autoridades israelenses já dispunham de recursos legais para expulsar aqueles que considerem hostis ao Estado judaico.
No dia 2, antes da votação da lei na Knesset, foi rejeitado na fronteira do Ben Gurion o diretor da ONG Human Rights Watch (HRW) para Israel e Palestina, o norte-americano Omar Shakir. Anos antes tinha feito campanha em favor do BDS, depois de comparar a situação sob a ocupação israelense à da África do Sul na época do apartheid. Citado pelo portal The Times of Israel, o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, Emmanuel Nahshon, justificou a decisão de proibir a entrada de Shakir qualificando a HRW, uma das principais ONGs mundiais em defesa dos direitos humanos, como “organização expressamente anti-israelense, cujos informes têm o único objetivo de prejudicar Israel à margem da verdade e da realidade”.
Em um recente editorial, The New York Times – que acompanha de perto as informações sobre o Estado judaico e é mídia de referência para a comunidade judaica norte-americana – argumentava que essa lei de controle na fronteira “projeta uma imagem de Israel como país hostil a todo aquele que não esteja de acordo com a ocupação e os assentamentos”.
“Em outras palavras, quem pensa que os assentamentos prejudicam Israel não poderá entrar no país”, ponderava, por sua vez, a colunista Sima Kadmon no jornal Yedioth Ahronoth, o mais vendido da imprensa israelense. “O Governo e a Knesset se envolveram na aprovação de uma longa série de leis que está começando a mudar a natureza de um Estado que se define como o único democrático do Oriente Médio”, comentava a analista política.
O líder do partido Lar Judaico, Naftali Bennett, alertou durante o debate na Knesset que a norma é “lógica e necessária, já que permite a Israel defender-se daqueles que querem causar-lhe mal”. Os nacionalistas religiosos da legenda de Bennett integram a coalizão do Governo de Netanyahu, ao lado de ultradireitistas, conservadores e ultraortodoxos judeus. O Executivo alega que a legislação responde a uma ameaça estratégica contra Israel enraizada no antissemitismo. Para isso contou no ano passado com um orçamento oficial equivalente a 100 milhões de reais, destinado a combater o movimento BDS.
Liberdade de expressão
As ONGs respondem que a lei “viola os princípios democráticos e a liberdade de expressão”. Esse é o argumento da Associação de Defesa dos Direitos Civis em Israel e da Adalah, uma instituição de defesa dos direitos da minoria árabe-israelense, que representa um quinto da população do país. Para a advogada Sawsan Saher, uma das dirigentes da Adalah, “trata-se de mais um marco na onda de legislação do Governo mais à direita da história, e que ameaça condenar Israel ao isolamento, ao impedir a dissensão política”.
A Paz Agora, organização fundada pelo escritor Amos Oz com outros intelectuais, adverte que a nova lei “vai corroer o apoio internacional a Israel”, ao mesmo tempo que alerta para o risco de desmembramento de famílias palestinas que vivem divididas entre Israel e Jerusalém Oriental, anexada depois da guerra de 1967.
O cientista político e porta-voz diplomático palestino Xavier Abu Eid destaca ainda que, em conformidade com os Acordos de Oslo, Israel tem sob sua responsabilidade o acesso às fronteiras palestinas, exceto a de Rafah, na Faixa de Gaza, que o Egito só abre ocasionalmente. “A nova lei aprovada é um reforço à colonização ilegal da Palestina”, ressalva Abu Eid, que lembra que o linguista norte-americano de origem judaica Noam Chomsky já teve negada a entrada em 2010, quando tentava cruzar a fronteira da Jordânia pela ponte Allenby para pronunciar conferências na Universidade de Bir Zeit, perto de Ramallah.
“Cada incidente em que um partidário do boicote for recusado no aeroporto de Ben Gurion depois de ter sido interrogado sobre suas declarações e ideias pode ser outro prego a mais no caixão da imagem de Israel como país aberto, democrático e racional”, prevê Chemi Shalev, representante do jornal Haaretz nos Estados Unidos.
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