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Bruxelas faz uma dura autocrítica e apresenta os planos da UE ‘pós Brexit’

Livro Branco oferece cinco cenários para a futura UE com 27 membros, já sem o Reino Unido

Claudi Pérez
O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, em Bruxelas na quarta-feira.
O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, em Bruxelas na quarta-feira.YVES HERMAN (REUTERS)

Na Europa as causas mais nobres convivem com perturbadora promiscuidade com desconfortáveis áreas de sombra. E essas áreas obscuras não param de crescer: ao conjunto de crises dos últimos tempos, Brexit incluído, soma-se agora a incerteza política, com o crescimento da extrema direita. Bruxelas apresentou na quarta-feira o esperado Livro Branco sobre o Futuro da Europa. Paradoxalmente, o mais interessante desse exercício de perspectiva é o olhar pelo retrovisor: a Comissão faz um incomum e duro exercício de autocrítica sobre seu papel na crise do último decênio.

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A UE evitou os mea culpa nos últimos anos apesar da péssima gestão da crise, em um estado de negação permanente do qual só saía à beira do abismo. A Comissão corrigiu o rumo das políticas econômicas com um pouco mais de flexibilidade fiscal e um plano de investimento, mas nunca fez nada parecido a uma autocrítica. Até a quarta-feira: o Livro Branco oferece vários cenários sobre a nova UE sem o Reino Unido e, de passagem, lança uma mensagem clara e direta sobre o papel das instituições europeias nos últimos tempos. A crise pôs a UE à prova. E a União demonstrou uma resistência formidável. Mas também afloraram graves problemas: “A União esteve abaixo das expectativas na pior crise financeira, econômica e social do pós-guerra”, resume o texto.

A Grande Recessão se transformou, na Europa, em uma crise existencial que deixou mais do que cicatrizes. “A recuperação está mal distribuída entre a sociedade e as regiões. Solucionar o legado da crise, do desemprego persistente aos altos níveis de endividamento, continua sendo uma prioridade urgente”, aponta Bruxelas, consciente de que o mal-estar social com a globalização indiscriminada explica, em parte, fenômenos como o Brexit. Quase 10 anos depois da quebra da Lehman Brothers, a Europa ainda não recuperou a renda per capita nem o índice de desemprego de antes da crise. Ao ponto de o legado da Grande Recessão ameaçar um dos princípios pétreos do europeísmo: “Os acontecimentos alimentaram dúvidas a respeito da economia social de mercado e sua capacidade de fazer que cada geração viva melhor que as anteriores”. “Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial existe um risco real de que os jovens vivam pior do que seus pais”, acrescenta.

A UE é o maior mercado comum do mundo. O euro é a segunda moeda mais usada. A diplomacia europeia liderou o recente acordo nuclear com o Irã, e o do clima em Paris. Mas os problemas estão aí: a segunda economia do bloco está de saída, a extrema direita abarca cerca de 25% dos votos na França. “O papel da Europa no mundo está diminuindo”, alerta o Livro Branco, em termos de população e PIB, e mesmo num conceito muito mais fluido como o atrativo internacional.

E um dos pilares básicos está em questão: a Comissão admite que a Europa “não pode continuar sendo ingênua: o soft power já não basta para ser poderoso quando a força prevalece sobre as regras”, diz em uma referência tácita à invasão da Ucrânia por parte da Rússia de Putin ou às diatribes de Trump. A UE “continua tendo um forte apoio”. Mas “já não é incondicional”. Há 10 anos, metade dos europeus confiava na UE; hoje, essa confiança se limita a um terço dos cidadãos.

O 'Livro Branco sobre o futuro da Europa'.
O 'Livro Branco sobre o futuro da Europa'.YVES HERMAN (REUTERS)

O diagnóstico, no final das contas, é demolidor, e em sua esmagadora sinceridade contrasta com a formidável complacência que caracterizou as instituições. A Comissão se queixa de que os Estados “culpam Bruxelas pelos problemas e nacionalizam os sucessos”, e acrescenta que a população “não é imune” à imagem de desunião” que a Europa mostrou repetidas vezes durante a crise, com o racha entre credores e devedores, ou a queda de braço entre Leste e Oeste na crise migratória. Por esse lado, e o da crise de defesa e segurança, chega uma das passagens mais sombrias do texto: “Os recentes ataques terroristas abalaram sociedade. As linhas difusas entre ameaças internas e externas estão mudando a forma de pensar a segurança e as fronteiras”. A crise de refugiados “abriu um debate sobre solidariedade e responsabilidade entre os Estados e colocou em questão o futuro da gestão de fronteiras e da livre circulação de pessoas na Europa”, admite. O presidente Jean-Claude Juncker foi mais otimista perante o Parlamento Europeu: “Qualquer dia triste de 2017 ainda será muito mais alegre que o de nossos antepassados nos campos de batalha”, disse solene, em uma frase que parece saída da descrição de Waterloo de Stendhal.

Cinco cenários para a Europa pós-Brexit

Além desse raro exercício de autocrítica, a Comissão inovou no Livro Branco apresentado na quarta-feira A Comissão costuma propor iniciativas, que depois são debatidas entre os Estados membros e o Parlamento Europeu até chegar a um texto final. Mas, nos últimos tempos, o braço Executivo da UE ficou absolutamente isolado em propostas de peso, como a proposta de solução da crise de refugiados. Farta de ver os membros culparem a Europa pelos fracassos e monopolizarem os êxitos, Bruxelas optou por um novo formato para desenhar a UE do futuro: expõe cinco cenários e obriga os Governos a dar sua opinião. Juncker tomará partido de uma das vias em seu discurso sobre o Estado da União em setembro. E os líderes terão a última palavra na cúpula de dezembro. As opções, em linhas gerais, são as seguintes:

1. Continuar igual. Aplicar a agenda atual, com avanços nos assuntos de segurança e defesa. O próprio Executivo comunitário admite que a integridade da UE pode ser posta em questão, mas essa via permite “acabar com o reflexo de regular absolutamente tudo”, segundo Juncker.

2. Somente mercado único. Essa é a opção mais minimalista. Preservaria as quatro grandes liberdades e transformaria o mercado comum na única razão de ser da UE, eliminando regulamentações europeias em todo o resto. “Não é minha opção, mas há Governos que querem limitar o papel da Comissão”, apontou o presidente em referência aos países do Leste. Seria uma espécie de sonho britânico transformado em realidade, logo agora que o Reino Unido saiu da União.

3. Diferentes velocidades. A UE com 27 continuaria funcionando como até agora, mas seriam incentivadas as múltiplas velocidades nas agendas fundamentais, para evitar que os vetos impeçam o avanço de quem quiser fazê-lo. A Europa já começou a seguir esse caminho, com a redução das votações por unanimidade para evitar os vetos. A Comissão destaca que essa via – apoiada por Alemanha e França – permitiria avançar em defesa, segurança e união fiscal, mas admite que esse caminho também pode gerar problemas de legitimidade democrática.

4. Menos é mais. Bruxelas oferece a possibilidade de a UE se concentrar nas áreas em que pode ser mais forte, e abandonar as que só geram divisões. Junto com o cenário anterior é, a priori, o mais realista, e tem o apoio de países como a Holanda.

5. Estados Unidos da Europa. A via defendida pelo liberal Guy Verhofstadt e com a qual Jean-Claude Juncker concorreu às eleições de 2014 não tem condições de prosperar: a crise política dos últimos anos fez aflorar enormes diferenças entre os Estados membros. A União se dirigiria dessa forma a uma maior harmonização fiscal, social e financeira, com a possibilidade de colocar em andamento estímulos contra os choques econômicos. Permitiria criar uma União Europeia da Defesa. Esse tipo de salto federal sempre foi o sonho dos pais fundadores da UE, mas não parece factível: Bruxelas admite o risco de “perder parte da sociedade, que acredita que a UE carece de legitimidade ou foi feita com muito poder”.

Os socialistas se separam

Lucía Abellán

Os socialistas buscam seu espaço político uma vez encerrada a grande coalizão no Parlamento Europeu. Diante do apoio tradicional prestado aos grandes símbolos da UE, o grupo socialdemocrata optou na quarta-feira por criticar a proposta da Comissão Europeia. "O Livro Branco nos decepciona. É uma reflexão ao invés de um plano claro para fortalecer nosso projeto. A Comissão não é um corpo burocrático, e sim político", disse o chefe dos sociais-democratas no Parlamento Europeu, Gianni Pittella, ao presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, que apresentou o projeto no hemiciclo europeu.

Os socialistas entendem que a crise política que assola a Europa exige uma aposta pela integração ao invés de se esboçar cinco cenários para que os Estados decidam. Apesar de tudo, essa postura não tem o apoio de todos os sociais-democratas (por exemplo, os líderes da República Tcheca e da Eslováquia demonstram receio). A Comissão criticou Pittella por colocar seu grupo do mesmo lado dos eurocéticos. Sua equipe refuta essa equiparação e tenta situar-se em uma via intermediária. Com um discurso mais ponderado, a eurodeputada Elena Valenciano deu a Juncker a razão no diagnóstico, mas acrescentou: “Ele se equivoca ao não mostrar o caminho”.

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