_
_
_
_
_

Na partilha das tarifas da Linha 4, a prioridade é da empresa privada

Contrato revela arquitetura para sustentar PPPs e coloca em questão reprodução do modelo

Estação Faria Lima, da Linha 4-Amarela
Estação Faria Lima, da Linha 4-AmarelaDivulgação

Nos trens de São Paulo, uma catraca não é apenas uma catraca. Ela faz parte de uma câmara de compensação que envolve todo o sistema de transporte sobre trilhos da cidade: tanto os pouco mais de 78 quilômetros de vias metroviárias, que são administrados pela empresa pública Metrô e pela Via Quatro (responsável pela Linha 4-Amarela), quanto os mais de 250 quilômetros de trens de superfície intermunicipais administrados pela estatal CPTM. A lógica faz parte de um jogo de repartição de receitas entre as duas empresas estatais de capital misto (Metrô e CPTM) e a Via Quatro.

Em uma frase, é possível dizer que todo o dinheiro do sistema de transporte sobre trilhos da cidade vai para um mesmo caixa, independentemente de onde o passageiro pegou o trem. Ao final do dia, o montante de dinheiro arrecadado em todas as catracas é dividido entre as três empresas. Verdade que ao usuário importa menos saber para onde o dinheiro vai e mais se há linhas funcionando de forma eficaz. Contudo, é importante saber que entre as três empresas há uma diferença no momento da efetuação de repasses, e que a companhia privada Via Quatro tem preferência.

Mais informações
Os trens fantasmas do metrô
Atrasos sucessivos deixam ao menos um milhão sem metrô em São Paulo
Metrô de SP tem menor oferta de linhas entre principais metrópoles do mundo
O metrô ao redor do mundo

Para entender os repasses estaduais à Via Quatro, é necessário saber, primeiro, que há dois tipos de usuários. De um lado, os classificados como “exclusivos” – aqueles que só usam trens desse percurso que vai da estação Butantã à estação Luz –; em média 10% dos passageiros da linha. De outro lado, os chamados “integrados”, os 90% provenientes de conexões das três linhas operadas pelo Estado, assim como da rede metropolitana de trens manejada pela CPTM.

Para dar unidade a essas receitas diversas e ordenar a sua repartição para empresas diferentes, a solução foi dirigir todo o dinheiro arrecadado nas catracas – do Metrô, da CPTM e da Via Quatro – para um fundo gestor chamado de Câmara de Compensação e Pagamentos. Ao final do dia, ordena-se uma fila para recebimento automático dos repasses, na qual a concessionária privada, a Via Quatro, tem preferência ante as duas estatais.

A “tarifa contratual” tem hoje o mesmo valor do bilhete unitário, que é de 3,80 reais. Como o tíquete correspondente a um usuário “exclusivo” é de 3,80 e o valor arrecadado com um usuário “integrado” é, pelo menos, metade disso, na medida do uso de duas ou mais linhas, a Via Quatro recebe 1,90 reais por cada passageiro “integrado”. Além disso, a fórmula empregada para o cálculo dos repasses integra a compensação das gratuidades – maiores de 60 anos, crianças menores de seis anos e meia passagem de estudantes. Com isso, chega-se a um valor médio final por passageiro de 2,07 reais.

Mas enfim, por que esta numeralha deve interessar ao usuário comum, o qual só quer mais trens levando-o a cada vez mais lugares? O bom funcionamento do sistema tarifário e dos contratos que o regulam, diz o advogado Pedro Baumgratz, que estudou em sua tese o contrato da Linha 4-Amarela, é importante porque implica a sustentação do modelo de PPP, que deve ser replicado, com algumas diferenças, para outros trajetos, futuros e já existentes, como a Linha 5-Lilás e a Linha 15-Prata.

“Saber que os repasses feitos à concessionária não dependeriam de questões políticas, como no caso das estatais, já foi um grande incentivo para o mercado” diz Baumgartz. Ele se refere a tarifas que podem vir a ser condicionados tanto por concessão de gratuidades como de represamento de reajustes para controle de inflação, por exemplo, como aconteceu algumas vezes com a Petrobras. Mesmo admitindo-se que a “tarifa contratual” se sobreponha, em regra, à “tarifa política”, restava ainda uma questão para dar atratividade à operação privada, segundo Baumgratz: “Como as empresas teriam certeza de que o Estado lhes transferiria o dinheiro das tarifas contratuais?” A garantia, diz ele, veio com a instituição da câmara de compensação. “Assim, ficou claro para o setor privado que ele seria pago sem ter que cobrar na Justiça pagamentos não feitos pelo Estado.”

Sustentabilidade do sistema

Para Baumgratz, do ponto de vista jurídico e econômico, o modelo é muito bem pensando, quando se trata da PPP. “O problema é que ele gera uma pressão muito grande sobre as empresas estatais e, se está funcionando agora, pode não ser sustentável no futuro”, alerta. No caso da Linha 6-Laranja, por exemplo, a concessionária vencedora já está um degrau abaixo da Via Quatro na hora de receber os repasses devidos da “tarifa contratual”. A questão, basicamente, é saber até quando o bolo de dinheiro acumulado na Câmara de Compensação e Pagamentos será suficiente para abastecer todas as empresas envolvidas no sistema de transporte público sobre trilhos.

Tese de Baumgratz mostra modelo tarifário definido em contrato
Tese de Baumgratz mostra modelo tarifário definido em contratoReprodução

Em entrevista à Folha de S. Paulo em 2016, o presidente da Via Quatro, Harald Zwetkoff demonstrou preocupação muito parecida com a de Baumgratz ao questionar a viabilidade do modelo de edital usado na Linha 4-Amarela. “Hoje há uma tarifa de 3,80 reais, que atende a Via Quatro, o Metrô e a CPTM. Amanhã, terá mais um operador da linha 6, depois de amanhã mais um da linha 5, aí outro na linha 17 e essa tarifa tem de ser redistribuída de forma justa para todos os players”, diz Zwetkoff. Para Baumgratz, em última instância é possível dizer que as concessionárias dependem da saúde financeira e do volume operacional do Metrô e da CPTM, já que compartilham a arrecadação com elas.

Para o Sindicato dos Metroviários, a Linha 4-Amarela já acarretou diminuição de qualidade de serviço e demissões no Metrô, em função da repartição da receita originária das linhas estatais. A Secretaria de Transportes Metropolitanos (STM) refuta a afirmação do sindicato, por meio de sua assessoria de imprensa. “Nas PPPs, as solicitações de reequilíbrio econômico-financeiro são processos previstos tanto pela contratada quanto pela contratante”, diz o órgão do Estado em nota. Questões como essa “estão sendo discutidas e avaliadas pela STM sem qualquer interferência na qualidade dos serviços prestados aos usuários”, completa.

“Não se trata de demonizar as PPPs, mas discutir como o modelo funciona”, diz Baumgratz

Reportagem do jornal Valor, de 2016, mostra, contudo, que o balanço administrativo de 2015 do Metrô revelou que a companhia havia tido perdas acumuladas de 332 milhões de reais em decorrência da preferência de repasses das tarifas para a Via Quatro. Um “termo de acordo” firmado entre o Metrô e o Governo estadual, de fato, reconheceu o montante como perda da companhia e se comprometeu a garantir que novas perdas não “afetem a sustentabilidade” do Metrô. Neste caso, o Tesouro estadual garantiria o repasse “a seu critério, das diferenças de arrecadação tarifária”. Não ficou claro, porém, quais são os requisitos para tais repasses.

Em 1993, quando a Linha 4-Amarela foi anunciada, o Brasil e o Estado de São Paulo levavam a cabo um amplo programa de privatizações. As motivações eram econômicas e políticas, mas, no caso do novo trajeto do metrô, também contratuais. Em 1999, o Banco Mundial condicionou um empréstimo para a construção da linha à opção por um modelo que delegasse sua operação à iniciativa privada.

“Não se trata de demonizar as PPPs, mas discutir como o modelo funciona”, diz Baumgratz. Em sua tese, ele questiona: É sustentável? É o melhor para a cidade? É justo com as companhias estatais? São questões em aberto.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_