Como minha primeira namorada me ajudou a ganhar um Pulitzer
William Finnegan, convidado da Flip, recorreu a antigas relações para ganhar o desejado prêmio
A literatura sobre surfe é escassa e basicamente ruim por uma razão muito simples. Em um diagrama de Venn, o lugar onde o conjunto “escritores talentosos” se intersecciona com o conjunto “pessoas que surfam e que entendem o surfe” é muito pequeno. Então, quando William Finnegan, cronista político da revista The New Yorker, decidiu escrever um livro de memórias sobre sua relação com o mar, praticamente ficou com uma onda virgem. Finnegan está na programação da Festa Literária de Paraty, a Flip 2017, que começou na quarta-feira e vai até domingo. A entrevista relatada nesta matéria foi concedida ao EL PAÍS em fevereiro deste ano, em um hotel em Barcelona.
“Vários grandes escritores tentaram. Mark Twain passou um dia em Waikiki [no Havaí], Jack London também. Tom Wolfe nem sequer entrou na água. Escreveu um artigo muito ruim, The Pump House Gang (A Gangue da Casa das Máquinas), que se tornou uma piada entre os surfistas", diz Finnegan, que ganhou o prêmio Pulitzer de biografia em 2016 com Dias Bárbaros – Uma Vida no Surfe (editora Intrínseca), relato de uma vida que o levou ao Havaí, à África do Sul, à Etiópia, à Ilha da Madeira e, agora, a ser um senhor de 64 anos que consulta as webcams para saber quando deve escapar de Manhattan para Montauk e se submeter a várias horas de congestionamento e a um frio desumano em troca de uns bons minutos de surfe antes de voltar ao trabalho.
Finnegan foi o primeiro jornalista de um veículo de comunicação importante a entrevistar Obama: “Flagrei-o fumando no banheiro de um McDonald’s”, diz sobre o ex-presidente
Para escrever o livro, teve de fazer o exercício nada fácil de investigar a si mesmo. “Suas melhores histórias você já contou tantas vezes que foram sendo polidas e já não resta nenhum fato puro”, admite. Assim, primeiramente fez a tarefa “arquivo e documentação”. Seu amigo de infância, Dominic, encontrou um maço de cartas que Finnegan lhe escreveu quase diariamente quando era pré-adolescente e sua família se mudou da Califórnia para o Havaí. Lá, falava das ondas e das garotas e, um pouco menos, das sutis divisões raciais que agora aborda no livro.
Depois da pesquisa, passou à comprovação dos dados. Telefonar, por exemplo, à primeira namorada, Karen, que o acompanhou quando ele deixou a universidade para poder surfar todos os dias. No livro, narra uma cena em que Karen reencontra o pai, que abandonara a família para ficar louco de ácido e perseguir a utopia hippie. Finnegan se lembrava do momento com total precisão. Ou assim pensava. Mas, de acordo com Karen, ele nem sequer esteve presente. Tiveram de fazer uma negociação, uma de muitas. “Em cada episódio, você tem de perguntar: ‘Quem tem direito a essa história?’. Toda a sua vida acontece off the recorde quando você escreve as suas memórias está se dando o direito de falar de todas as pessoas de que gostou”. No livro ele aparece como um grande cara, mas um péssimo namorado, lhe dizemos. “Exato! Obrigado. Isso é o que eu pensava. Eu me vi como alguém muito pouco razoável no meu relacionamento com as mulheres”.
Finnegan também foi o primeiro jornalista de um grande veículo de comunicação a entrevistar o ex-presidente dos EUA Barack Obama, quando ainda nem era senador por Illinois. Ficou “fascinado” por ele e quando entregou o texto ao editor este lhe disse que tinha escrito “besteiras” e perguntou se não tinha nada de ruim para escrever sobre Obama. “Flagrei-o fumando no banheiro de um McDonald’s, mas não penso escrever sobre isso”, respondi. Tampouco incluiu o que várias fontes disseram, que aquele cara se tornaria o primeiro presidente negro. Por que não escreveu?, Pareceu-lhe ridículo, apelativo? “Não, mas eu teria dado azar a Obama, más vibrações”.
“Suas melhores histórias você já contou tantas vezes que foram sendo polidas e já não resta nenhum fato puro”, admite
Finnegan falou sobre a situação atual de seu país, com Donald Trump como presidente: “Temos de investigar mais profundamente do que nunca, mesmo que seja para compilar um relato rigoroso deste período. Além disso, existem lugares no mundo onde isso não os afeta e temos de lidar com isso também”.
Na véspera das eleições presidenciais do ano passado, quando votou em Hillary Clinton, o escritor surfou em Montauk. No dia seguinte não. “Passei essas 24 horas em conversas com colegas e parentes que estavam de coração partido, inclusive a minha filha Mollie, de 15 anos”. Mollie, podemos intuir, é a razão pela qual seus dias deixaram de ser bárbaros. Você a ensinou a surfar? “Oh, Deus, não, espero que ela não pegue gosto por isso. Não quero que ela ande por aí cercada de surfistas”.
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