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Opinião
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Ameaças à liberdade de imprensa

O populismo em alta —e a chegada de Donald Trump à Casa Branca é um bom exemplo disso– pretende transformar a sociedade e levar junto quem cumpre uma decisiva função de vigilância no sistema democrático

Antonio Caño
NICOLÁS AZNÁREZ

A chegada de Donald Trump à Casa Branca representa a confirmação mais contundente do êxito da demagogia, do nacionalismo e das ideologias de ódio que nos últimos anos proliferaram em diferentes partes do mundo. É muito possível que a corrente não se detenha aí. Em vários países da Europa será posta à prova muito em breve a força do atual sistema de democracia liberal diante da investida de projetos igualmente extremistas, xenófobos e populistas.

O crescimento desse fenômeno coincidiu quase simultaneamente no tempo com a crise dos jornais provocada pela revolução tecnológica. Isso não significa que as mudanças políticas ocorridas nos últimos anos se expliquem exclusivamente pela perda de influência dos jornais impressos e o aparecimento dos meios de comunicação alternativos. Mas parece, sim, evidente que uma coisa e outra estão estreitamente vinculadas, e que nós, nos jornais, estamos hoje obrigados a fazer nosso trabalho com menos recursos e em um entorno político que representa uma séria ameaça à liberdade de expressão e muito particularmente à liberdade de imprensa.

Uma das características desse novo populismo em ascensão é sua hostilidade para com a imprensa, especialmente a imprensa profissional. Com o pretexto da suposta comunhão entre os meios mais consolidados e um perverso establishment, os políticos que se apresentam em defesa do povo, das pessoas, dos de baixo contra os de cima, tentam antes de mais nada esmagar a credibilidade dos jornais com o objetivo de eliminar obstáculos em seu caminho e deixar espaço a outras mídias –confidenciais, contas de redes sociais, blogs– que eles controlem e com as quais possam ter acesso, sem intermediários, a seu público, seus eleitores.

Esta estratégia se tornou brutalmente óbvia nos Estados Unidos. Em uma recente conferência em Madri, o diretor de The Washington Post, Martin Baron, detalhou a lista de impropérios que Trump havia vertido nos meses anteriores contra os meios de comunicação, de forma mais sistemática contra o seu próprio e The New York Times: “Asquerosos”, “escória”, “a forma mais baixa de vida”, “inimigos”, “lixo”. Houve mais desde que nosso colega pronunciou seu discurso.

Pretende-se arruinar o crédito dos jornais situando-os com desprezo em um canto da história

Não foram muito diferentes os termos com que os líderes de um partido na Espanha se referiram à imprensa e a EL PAÍS em particular. Entre dezenas de calúnias e intrigas que evito enumerar para não contribuir com sua difusão –a repetição de falsidades até transformá-las em verdade é uma tática clássica–, vou mencionar unicamente a campanha no Twitter contra este jornal sob a hashtag “Máquina de Fango” (Máquina de Lama), em novembro, em resposta às informações sobre um controverso episódio de venda de moradia pública.

O propósito em todos os casos é evidente: destruído o prestígio e a credibilidade dos principais meios de comunicação, nada do que eles criticarem terá impacto entre meus seguidores. Funcionou com Trump, que conseguiu sobreviver ao escândalo de suas agressões sexuais a mulheres e que evitou até agora apresentar a declaração de renda que a imprensa lhe pediu. E funcionou com outros, que puderam ignorar, sem esclarecer, as suspeitas sobre suas fontes de financiamento.

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Há muitos casos semelhantes em outros países com diferente orientação ideológica – a Polônia de Kaczynski, a Argentina de Kirchner, a Itália de Berlusconi são alguns deles—, todos com os mesmos componentes: políticos supostamente antissistema, meios de comunicação tradicionais e mídias de fácil criação na Internet que servem para difundir a propaganda, as fantasias ou, chegado o caso, as mentiras de quem quer se oferecer como alternativa ao decadente sistema em vigor.

Isto foi possível, em parte, devido aos erros dos próprios jornais. Baron afirmou que apenas 32% dos cidadãos norte-americanos dão credibilidade à imprensa de seu país, o que representa uma queda de 25 pontos desde 1999. A situação na Espanha é apenas ligeiramente melhor. No relatório de 2015 do CIS sobre o assunto, os espanhóis atribuíam aos meios de comunicação uma avaliação de 4,28 pontos sobre dez. Cerca de 15% da população não confia nunca ou quase nunca na mídia, diante de 2,5% que confia sempre ou quase sempre.

Pode-se dizer que o desprestígio que o populismo moderno tenta causar aos jornais só contribui para o o descrédito que essa mídia vem cavando por conta própria nos últimos anos. Sua proximidade excessiva do poder, sua distância dos leitores, sua endogamia e arrogância impediram às vezes que os jornais fizessem uma interpretação adequada dos fatos. Em nossa cegueira, inclusive desprezamos durante vários anos a avalanche digital que vinha em cima de nós e que acabaria por colocar em dúvida nossa existência.

Esse desafio, a transformação para um mundo digital, nos oferece gigantescas possibilidades diante do futuro. Mas também, no presente, nos tornou muito mais vulneráveis —não só em relação aos demagogos que tentam nos anular, como também diante de outros atores políticos e econômicos que tentam nos controlar—, precisamente no momento em que uma imprensa independente e forte é mais necessária do que nunca.

Não me importa insistir nos erros que os jornais cometeram e cometem todo dia. Exageros, imprecisões, frivolidades, omissões, descuidos... estão na ordem do dia de uma profissão que, além de tudo, agora se vê obrigada a trabalhar em condições de trabalho piores. Mas todos os defeitos imagináveis não são suficientes para esquecer a decisiva função de vigilância que os jornais cumprem em uma sociedade democrática. Sem eles, simplesmente estaríamos à mercê dos embusteiros e dos manipuladores.

Às vezes, pretende-se arruinar o crédito dos jornais situando-os com desprezo em um canto da história. Trata-se de apresentar a realidade como uma luta entre as ideias do passado, representadas pelos jornais tradicionais, e as novas ideias que trazem os novos meios digitais. Não é assim. O certo é que tanto The Washington Post como EL PAÍS são também os principais jornais digitais em seus respectivos mercados, e que a verdadeira batalha não é tecnológica mas profissional, não entre papel e web, mas entre quem cumpre as regras do jornalismo autêntico e quem as viola sistematicamente.

Fala-se muito atualmente em fake news, em pós-verdade. As principais redes sociais se precipitam a tomar medidas para responder a essa ameaça, conscientes de que a desaparição do valor da verdade significa simplesmente a desaparição de todos os valores que nos permitem conviver.

Na preservação desses valores, os jornais ocupam um papel determinante. Os jornais têm orientação ideológica, sem dúvida. Defendem algumas ideias e não outras, e são o reflexo de um determinado modelo de sociedade em detrimento de outros. Esse é o jogo da pluralidade. Mas os interesses dos jornais estão limitados ao fornecimento de informação veraz a seus leitores, e sua atuação está claramente marcada por um código ético que devem respeitar. Isso não deveria ser lido como simples retórica em uma época em que, simplesmente, está em jogo a democracia como a conhecemos hoje.

Donald Trump e seus imitadores em outros países não são um pesadelo do qual despertaremos logo para nos vermos no mesmo ponto em que estávamos. Esta onda de populismo e ultranacionalismo pretende transformar radicalmente o sistema político sob o qual vivemos. Se for possível, será levado adiante pela liberdade de imprensa. Por esse motivo, a liberdade de imprensa, os jornais saudáveis, rigorosos e livres são a melhor barreira que podemos oferecer.

Antonio Caño é diretor do EL PAÍS.

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