Lei e Ordem para quem?
Ações com o mote surgem para garantir "segurança", mas cerceiam liberdades individuais e direitos
No dia 17 de janeiro, por Decreto, Michel Temer autorizou o emprego das forças armadas para a “garantia da lei e da ordem” no sistema penitenciário brasileiro. A partir da anuência dos governadores estaduais e em articulação com agentes de segurança pública, as forças armadas atuariam nas dependências de estabelecimentos prisionais brasileiros para a detecção de armas, aparelhos de telefonia móvel, drogas e outros materiais ilícitos ou proibidos.
Essa seria uma das respostas dadas pelo Executivo para o caos prisional vivido recentemente no Brasil, visto que, desde o início do ano, estouraram diversas rebeliões em vários cárceres do país, o que gerou a morte de aproximadamente 150 pessoas privadas de liberdade. Os episódios de rebelião em unidades prisionais do Amazonas, Roraima, Bahia e Rio Grande do Norte repercutiram e elevaram a questão carcerária a problema nacional. Nesse contexto, alguns estados do norte já aceitaram a presença do Exército em suas prisões, bem como solicitaram mais militares em suas fronteiras, com vistas a coibir a entrada de armas e drogas.
A inclusão das forças armadas nas prisões enseja fortes preocupações. Alguns especialistas são enfáticos em considerar a inconstitucionalidade da ação, pois desvia as finalidades legais dessas corporações, que é a de segurança nacional. Adicionalmente, essa medida é meramente paliativa e demagógica, pois deixa de tocar em um problema central às prisões brasileiras: a superlotação. Essa questão é gerada, sobretudo, pela política de guerra às drogas, cujo efeito tem sido o aumento dos níveis de encarceramento no país. O Relatório da ONG Human Rights Watch, de 2017, associa o vertiginoso crescimento da população carcerária nacional - cerca de 140% nos últimos quinze anos, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional – à Lei de Drogas, visto que esta norma confunde usuários de drogas com traficantes.
A presença das forças armadas também pode produzir um aumento drástico nos níveis de violência nos cárceres, já que constituem a face estatal das operações de guerra, agora inseridas e ajustadas às vigilâncias do sistema prisional. A força empreendida nos conflitos armados voltados à segurança nacional é completamente distinta da empregada em situações de segurança pública. Esse tema é muito mais sensível se consideramos o contexto de pessoas em situação de vulnerabilidade, tal qual uma prisão.
De fato, o Brasil já presenciou momentos em que as forças armadas realizaram tarefas de segurança pública. Na Ditadura Civil Militar, as ações de segurança pública eram embebidas na doutrina de segurança nacional, resultando em gravíssimos cerceamentos de direitos – como a instituição do AI 5, que suspendeu os direitos políticos -, bem como em inúmeros casos de tortura, desaparecimentos e mortes de pessoas.
O resultado de ocupações militares foi um acirramento da violência em favelas do Rio de Janeiro, tendo sido comuns casos de tiroteios, mortes e feridos, bem como relatos de atos truculentos
Também sob o jugo da “lei e da ordem”, no Rio 92, nos Jogos Pan-americanos de 2007, assim como nos anos que antecederam e durante os eventos esportivos de 2014 e 2016, o Exército ocupou favelas do Rio de Janeiro, a partir de uma articulação entre o governo federal e estadual. Nestas últimas vezes em que as forças armadas ocuparam as favelas, de acordo com o discurso oficial, essas corporações contribuiriam com o processo de consolidação das Unidades de Polícia Pacificadora nos territórios. No Complexo do Alemão, por exemplo, o Exército estava liberado, por autorização judicial, a realizar busca e apreensão nas residências de moradores, bem como a ocupar casas. Além disso, comandantes militares poderiam investigar as finanças do tráfico de drogas, realizar patrulhamento, fazer bloqueio de acessos e executar prisões. O resultado dessas ocupações foi um acirramento da violência em favelas do Rio de Janeiro, tendo sido comuns casos de tiroteios, mortes e feridos, bem como relatos de atos truculentos e uso desmedido da força contra moradores.
Nota-se que as ações embebidas no mote da “lei e da ordem” surgem sob a justificativa formal de garantir a “segurança” e o fortalecimento do Estado Democrático, impedindo, no caso dos presídios brasileiros, situações de rebeliões. Contudo, na prática, esse tipo de ação produz efeitos contrários, como o cerceamento das liberdades individuais, a relativização de direitos fundamentais, a imposição da lógica hierárquica sobre a vida “civil” e a militarização do cotidiano. Não à toa, Temer, em reunião com governadores estaduais, mencionou que “as forças armadas serão fator para atemorização em presídios”.
A linguagem da repressão está se expandido continuamente em nossa sociedade. E a publicação do Decreto pelo Michel Temer apenas ilustra o modo como essa lógica se desenha nas rotinas prisionais. Muito longe de garantir a normalidade nos cárceres, a presença das forças armadas reforça um contexto explosivo e cerceador. A pergunta que se faz, então, é para quem se busca garantir a lei e a ordem? Definitivamente, as pessoas privadas de liberdade não cabem nessa resposta.
Thais Lemos Duarte é socióloga e perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Frank Davies é sociólogo e doutorando da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Este artigo reflete opiniões pessoais e não as dos órgãos a que estão filiados os autores.
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