_
_
_
_

Obama se despede alertando para as ameaças à democracia dos EUA

Em seu discurso de despedida, presidente democrata faz um libelo em prol da imigração, da criatividade e da igualdade de oportunidades como baluartes contra o totalitarismo

Barack e Michelle Obama, no evento de despedida do presidente dos EUA em Chicago.Vídeo: Darren Hauck (AFP) | ATLAS
Amanda Mars

Barack Obama disse adeus aos norte-americanos na noite de terça-feira alertando para as ameaças que se abatem sobre a democracia, advertindo que ela “corre perigo quando se dá como um fato consumado” e se rompe “quando se cede ao medo”. Num longo discurso em Chicago, resumiu as feridas que ainda supuram na América – a da raça, a da desigualdade – e citou a imigração e a inovação como baluartes do espírito americano, o mesmo que ajudou, disse, a criar uma nova ordem depois da Segunda Guerra Mundial.

Mais informações
Barack Obama, no início e no fim de sua gestão
Michelle Obama em sua despedida: “A diversidade não é uma ameaça”
Trump semeia o caos no processo de transição da presidência dos EUA
O Governo radical dos EUA à imagem e semelhança de Donald Trump
Obama se despede do mundo com uma defesa apaixonada da imigração

“É esse espírito que nos tornou uma potência econômica, que nos fez decolar do Kitty Hawk e do Cabo Canaveral; o espírito que cura doenças e coloca um computador em cada bolso”, louvou o 44º. presidente norte-americano; o mesmo espírito, prosseguiu, “que nos permitiu resistir ao fascismo e à tirania durante a Grande Depressão”. Prestes a passar o bastão a um sucessor que mobilizou o nacionalismo branco e prometeu pulso firme com os imigrantes, Obama alertou contra as divisões. “Se nos negamos a investir nos filhos dos imigrantes só porque não se parecem conosco”, advertiu, “reduzimos as chances dos nossos filhos”.

Cada presidente se aposenta à sua maneira. Ronald Reagan e Bill Clinton se despediram com um pronunciamento televisivo feito no Salão Oval da Casa Branca; George W. Bush optou pela Ala Leste da sede de Governo, com algumas dezenas de acompanhantes. Obama, por sua vez, quis um banho de povo, seu habitat natural, e no local que o consagrou, entre aplausos e vivas.

Centenas de pessoas faziam fila desde a manhã para encontrar um bom lugar no centro de convenções escolhido para receber o discurso, apesar do dia chuvoso e da temperatura próxima a zero grau. Obama é um homem de Chicago, não por nascimento, e sim por adoção e acima de tudo por convicção. Foi no ativismo dos bairros que fincou os alicerces da sua política, um idealismo pragmático, embora também emocional, de resultados imperfeitos. O “yes, we can” (“sim, podemos”), na medida do possível.

"Foi nestas ruas onde vi o poder da fé, a dignidade silenciosa dos trabalhadores diante da luta e da perda"

“Foi o melhor presidente da história, encontrou uma economia afundada e a resgatou, impulsionou mais do que nunca a saúde universal”, dizia Siri Hibbler enquanto aguardava para escutar o último discurso do presidente democrata.

Barack Hussein Obama (Honolulu, Havaí, 1962) sai depois de oito anos à frente do país mais poderoso do mundo. Primeiro presidente negro dos Estados Unidos, só por isso já teria feito história. O resto do seu legado, a de sua obra de Governo, poderá ser julgado dentro de alguns anos, e não só com base na vitória eleitoral de Donald Trump, que parece encarnar sua antítese em fundo e forma.

Sem citá-lo, disparou várias mensagens ao seu sucessor. Defender a democracia, disse Obama, exige algo mais que um Exército. Por isso, salientou, “acabamos com a tortura, trabalhamos para fechar [a prisão militar de] Guantánamo”; por isso “rejeito discriminar os norte-americanos muçulmanos”, acrescentou, questionando assim algumas das ideias apresentadas por Trump. O discurso com que Obama fecha seu ciclo, seu inflamado libelo em prol da mestiçagem e da solidariedade, ocorre de costas para um país onde a classe trabalhadora se sente alienada da riqueza, com uma esfera política, sobretudo na Europa, onde o nacionalismo e o populismo estão ganhando impulso graças ao desencanto.

Obama junto a sua esposa Michelle e sua filha Malia.
Obama junto a sua esposa Michelle e sua filha Malia.JONATHAN ERNST

"A América pós-racial nunca foi realista"

O ainda presidente admitiu que resta muito trabalho a fazer, na distribuição da riqueza e na convivência: “Depois que eu fui eleito, falou-se de uma América pós-racial. Essa visão, embora bem-intencionada, nunca foi realista. A raça continua sendo uma força potente e divisora em nossa sociedade”.

"A raça continua sendo uma força potente e divisora em nossa sociedade"

A violência e as tensões raciais na mesma cidade em que falava, recordam todo esse trabalho pendente. O aborrecimento expresso em uma parte importante do trumpismo, também. Mesmo assim, nessa noite, o presidente democrata defendeu as conquistas alcançadas desde 2008: “Se tivesse dito, há oito anos, que a América se recuperaria de uma grande recessão, que teríamos o maior período de criação de emprego da história… Se tivesse dito que abriríamos um novo capítulo com o povo cubano, que o programa nuclear do Irã seria encerrado sem disparar um só tiro, que eliminaríamos o cérebro do 11 de Setembro, que obteríamos o casamento igualitário…” E o público vinha abaixo. Quando se emocionou, ao se dirigir a sua esposa, Michelle, também.

Sedutor de massas, voltou ao seu berço político para se despedir e só podia lançar mão dessas origens para explicar-se a si mesmo, recordando o trabalho nos bairros e nas paróquias, nos discursos acalorados nas áreas mais duras de Chicago. “Foi nestas ruas que vi o poder da fé, a dignidade silenciosa dos trabalhadores diante da luta e da perda. Foi aqui que aprendi que a mudança só ocorre quando as pessoas comuns se envolvem, se comprometem e se unem para reivindicá-la”, enfatizou.

Acabou o discurso com o lema que em 2008 o levou a triunfo e que permeou o mundo: “Sim, podemos”, disse. “Sim, fizemos”

A nove dias de deixar a Casa Branca, Obama apresentou uma imagem oposta ao relato de cansaço e insegurança sobre o qual a campanha republicana à presidência se baseou. O já quase ex-presidente reivindicou o trono mundial dos Estados Unidos. “Continuamos sendo o país mais rico, poderoso e respeitado da Terra. Nossa juventude e nossa direção, nossa diversidade e abertura, e nossa ilimitada capacidade para a reinvenção nos dizem que o futuro deveria ser nosso.”

A democracia, no ideário de Obama, tem a ver com a “solidariedade”, não com a “uniformidade”. Acabou o discurso com o lema que em 2008 o levou a triunfo e que permeou o mundo: “Sim, podemos”, disse. “Sim, fizemos”, prosseguiu. E arrematou: “Sim, podemos” – até onde deu.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_