Cansado dos modismos? A culpa também pode ser sua
As modinhas na gastronomia agitam o mercado, criam burburinho, surgem e acabam. O que é bom permanece
No fim dos anos 80, durante o curso de jornalismo, eu alimentava o sonho vagamente difuso de ser crítico de música. Nem pensava que, um dia, me especializaria em comida. Não deu certo e foi melhor assim, pois não sei se eu me tornaria um bom estudioso e avaliador de álbuns e canções. Dentro da minha idealização sobre o que seria o trabalho, eu imaginava que o mundo seria um baú infinito de discos dos Smiths e do R.E.M. para resenhar. Obviamente que não.
Quando caíssem em minhas mãos os últimos lançamentos do axé e do sertanejo, por exemplo, o que eu faria? Simplesmente os destruiria? Seria eu capaz de discorrer a respeito das canções, sem rejeições automáticas, logo que soasse o primeiro baticum? Logo que surgissem os primeiros trinados daquele duo vocal em que um canta agudíssimo e outro encaixa uma terça meio esquisita? Não ia funcionar, eu seria apenas preconceituoso (ainda que com plenos direitos, como todos nós, a cultivar um gosto pessoal). Com a comida, por outro lado, aconteceu diferente. Sempre fui capaz de provar de tudo em todos os lugares. E de tentar entender (e explicar) se a experiência foi boa ou não.
Mas eu lembro que, na época da faculdade, uma das questões que me incomodavam era como a indústria, para vender mais, obrigava seus artistas a criar mais rápido, e a produzir músicas essencialmente descartáveis – segundo a minha opinião e do alto da sabedoria dos vinte e poucos anos. Ninguém mais, pensava eu, se dedicava a elaborar algo como Sgt. Pepper’s ou Ziggy Stardust, que pudesse durar ao longo das décadas. Tudo conduzia para o império do fugaz, com pouco tempo para compor, para lapidar, para consumir.
Em momentos menos esperançosos, isso me entristecia. Mas, em momentos mais cínicos (ou realistas, quem sabe), eu simplesmente pensava: já que a nova ordem era assim, que as coisas ficassem às claras. Que a lógica do descartável fosse assumida, e que músicos e seu público tivessem consciência de que uma canção, ou uma certa linhagem delas, ao menos, fosse mesmo feita para durar apenas um verão. Seria para vender/comprar, curtir naquele instante, e pular para a próxima. E olha que eu nem sabia o que aconteceria depois da revolução digital, da internet, onde predominam o imediato e o efêmero (eu sei, eu sei: é uma coluna sobre gastronomia, já vou chegar lá).
Tudo isso me ocorreu lendo o artigo de Mikel López Iturriaga, o “Comidista”, aqui no El País, sobre os modismos que ele gostaria de ver longe das mesas em 2017. A lista é divertida e, em sua maioria, muito pertinente – pode ser aplicada não apenas aos restaurantes e hábitos alimentares da Espanha, mas aos de qualquer grande cidade. E, convenhamos, o que não falta é gente reclamando de itens como azeite trufado, sucos detox e dry-aged (para não ser injusto: com a vulgarização e o mau uso desse tipo de carne, diga-se).
Não vou aqui destrinchar os movimentos e vetores por trás de um modismo. Há pesquisas, há ações premeditadas, há acasos. Ainda não existe nada parecido com aqueles comitês formalmente constituídos que, de Paris, decidem e anunciam as cores da nova estação ou coisa do tipo. Mas imaginem o seguinte. O mercado é voraz por novidades, por um lado. Numa trilha paralela, um cozinheiro ou quituteiro inventam alguma coisa. O empresário lança, as ações de comunicação difundem. Os temas podem variar: os carinhos sensoriais da comida “da vovó”, um pretenso luxo, a sustentabilidade, a saúde... Porém, a “grande ideia” só vinga se eu ou você pusermos a mão no bolso.
Meu ponto é o seguinte. As modinhas, na música ou na gastronomia, agitam o mercado, criam burburinho, surgem e acabam (quem têm qualidades reais, geralmente fica). Saturam a nossa paciência, tornam-se motivo de gozação. Mas elas só se arrastam (pelas paradas ou pelas cozinhas) se o cliente pagar para ver.
Lendo a coluna do Mikel e bisbilhotando outras listas semelhantes em publicações de outros países, noto como os modismos se globalizaram. Mais ainda: não se restringem a países de panorama gastronômico pouco consolidado, com paladares em tese menos cultivados. Hamburgerias, casas de lâmen, izakayas, lojas de cupcakes, nada disso é exclusividade de uma pátria. Tem na França, no Brasil, nos Estados Unidos. Embora eu acredite, não sei se ingenuamente, na importância de educar o público. Chefs, imprensa, escolas, todos deveríamos contribuir para formar cidadãos que comam melhor e gastem melhor. No dia em que as pessoas perceberem que ingredientes frescos valem mais do que qualquer ouro de tolo aromatizado e finamente embalado, cairão menos em arapucas.
Alguém prenuncia uma nova onda e lá vão os adesistas de primeira hora, todos correndo na mesma direção. Vira tudo uma coisa só.
Há pouco tempo eu lembro de uma carrocinha charmosa, candidamente kitsch, instalada num shopping, vendendo brownie em pedaços. Fiquei de olho no movimento um dia, depois em outro, e o carrinho sempre vazio, apenas com a funcionária matando o tédio com seu celular. Será que era porque cada cubinho do quitute custava R$ 5? Ou por que aquilo que parecia uma grande sacada (visual gracioso + comfort food + doce de agrado geral) na verdade não caiu nas graças de quem compra? Bom, o tal quiosque sobre rodas não está mais lá.
O que mais me incomoda nas modas é aquilo que, roubando uma ideia político-econômica, eu chamo de “pensamento único”. Alguém prenuncia uma nova onda e lá vão os adesistas de primeira hora, todos correndo na mesma direção. Vira tudo uma coisa só. E aí, aonde quer que se vá, sempre haverá aquele mesmo produto. Um prato ou ingrediente, então, se tornam como aquela música da Rihanna ou da Anitta que parecem onipresentes: no comercial de TV, no supermercado, no táxi.
Peguemos o caso do azeite “de trufas”, que o Comidista cita em seu texto. O ingrediente surgiu, muito tempo atrás, como uma forma de conservar o sabor da iguaria, mesmo fora da temporada. Passou a ser utilizado para reforçar notas e aromas das trufas de menor qualidade. O produto mais natural, contudo, perdeu espaço para equivalentes mais baratos, à base de “essências” artificiais. E o tal azeite trufado se tornou truque secreto para, digamos, enobrecer qualquer receita, não importa o estilo culinário. Mas só perdura porque uma boa parcela do público o aprecia. É preciso baní-lo das gôndolas? Claro que não, basta usar com certo discernimento.
Creio, então, que nesse universo ávido por tendências e novidades, o que podemos ansiar é que, ao menos, os modismos sejam toleráveis. E que, por vezes, até deixem algum legado. Ondas sempre existiram e existirão. E lembrem-se que somos nós, consumidores, que temos o poder de decidir o que irá para frente e o que irá para a lixeira. De resto, eu também começo a deixar meus votos de ano novo. Para vocês, um 2017 com menos dietas restritivas, menos pipoca gourmet e nenhum hamburguer ou salsicha vegetarianos.
* Luiz Américo Camargo é comentarista e consultor gastronômico, especializado em eventos e produção de conteúdo. Foi um dos fundadores do Paladar, marca de gastronomia de O Estado de S. Paulo. É também colunista do jornal Zero Hora.
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