Doria desata crise com incertezas sobre a Virada Cultural às vésperas da posse
Transferência do evento a Interlagos, anunciado pelo prefeito eleito, ainda é incerta Para especialistas, mudanças ameaçariam conceito do evento e uso do espaço público
O plano de transferir a Virada Cultural de São Paulo para o autódromo de Interlagos, anunciado pelo prefeito eleito da cidade, João Doria (PSDB), provocou críticas de urbanistas e agentes culturais e criou um problema para a equipe de transição do tucano a um mês da posse. Depois de sentar as bases de uma grande polêmica, a novidade sobre o evento pode não ser como o mencionado. Ao menos, isso foi o que anunciou o secretário designado por Doria, André Sturm, em uma coletiva de imprensa na manhã desta quinta-feira, convocada para apaziguar a controvérsia. Segundo Sturm, a Virada continuará acontecendo no centro, mas sem os grandes palcos. Esses passarão a espaços que comportem “com mais tranquilidade” grandes concentrações de público – entre os quais pode estar ou não Interlagos.
“O que sabemos ao certo é que a Virada Cultural vai ser mais descentralizada do que ela já é. Para isso, os grandes shows serão deslocados do centro. Haverá mais atrações pequenas, espalhadas no centro e nos bairros, que reforcem a atratividade dos equipamentos culturais. Isso permitirá que as pessoas conheçam esses espaços e passem a frequentá-los o ano todo”, resumiu André Sturm. De qualquer modo, segundo ele, a ocupação das ruas do centro continua sendo “o principal objetivo do evento”.
Sturm esclareceu que a ideia de usar Interlagos surgiu em uma conversa com Doria, na qual foram levantadas outras possibilidades para os grandes shows, como o estádio do Pacaembu e o parque do Ibirapuera – rapidamente descartadas por falta de condições apropriadas. Ele fez questão de reforçar que “a questão não é Interlagos, é tirar os grandes shows do centro”. Questionado, então, sobre o Carnaval de rua da cidade – evento que da mesma maneira evoca problemas relacionados a grandes concentrações de público, Sturm se limitou a garantir que “não haverá mudança no conceito e na fórmula do Carnaval”.
Projeto de lei na Câmara para fixar o formato da Virada
Em meio à controvérsia, o projeto de lei proposto em 2013 pelo vereador Andrea Matarazzo (PSD) que institucionaliza a Virada Cultural no calendário paulistano foi aprovado nesta quarta-feira (7) em primeira votação na Câmara Municipal.
Se passar na segunda votação, que tem chances de ocorrer semana que vem, a prefeitura paulistana terá que realizar o evento principalmente no centro, já que o texto fala em "ter como referência principal, mas não exclusiva, o centro histórico da cidade" e a ocupar outras subprefeituras. Depois das votações, tem ainda que passar pela aprovação do atual prefeito, Fernando Haddad – ou, se não caminhar rapidamente, pela aprovação de Doria, na nova gestão. Matarazzo nega que a entrada do projeto na pauta do dia esteja relacionada ao debate do momento sobre a Virada
O novo formato da Virada Cultural, no entanto, continua incerto. Criado em 2005 durante a Prefeitura de José Serra (PSDB) e inspirado na Nuit Blanche, que desde 2002 oferece 24h de atrações culturais no centro expandido de Paris, o evento realizado ao ar livre principalmente no centro de São Paulo contribuiu nos últimos 12 anos para uma relação direta e positiva de seus cidadãos com a rua. Se passar a acontecer em espaços confinados, como vislumbrou Doria, ele corre o risco de ter descaracterizado seu sentido original – o que ameaça um processo de ocupação do espaço público que vem crescendo na cidade na última década. É o que afirmam especialistas e ativistas ouvidos pelo EL PAÍS.
Para Doria, problemas de segurança e limpeza seriam sanados com a mudança, já que, segundo ele, o autódromo de Interlagos tem mais "segurança, acessibilidade e funcionalidade". Segurança é de fato um problema para a Virada Cultural, que em 2015 registrou 73 ocorrências no centro, entre roubos e furtos, de acordo com a Polícia Militar. Foram menos que em 2014 quando sete pessoas foram baleadas e quatro feridas a faca no evento. E na edição de 2016, quando os palcos foram concentrados e diminuiu o número de atrações da madrugada, os índices de violência caíram ainda mais: seis pessoas foram detidas e houve 19 crimes. É o menor número da história do evento, o que sinaliza que os esforços empenhados para sanar o problema funcionaram.
A mudança afetaria, portanto, outra questão: o sentido de ser da Virada Cultural. Para a urbanista Laura Sobral, a principal vantagem da Virada é ter dado aos paulistanos uma nova visão, justamente, sobre o centro da cidade. “Ele sempre foi visto como inseguro e decadente, e muitos tinham de receio de ir para lá. A Virada fez com que muita gente que nunca tinha frequentado essa área central prestasse atenção nas suas belezas, no patrimônio histórico, na diversidade de pessoas. Redescobrimos um território nosso, que fala da nossa história – e isso agregado à Cultura, o que traz a vivacidade para o espaço”. Para Sobral, “seria um acinte, inclusive, continuar chamando Virada Cultural”.
Guilherme Wisnik concorda. Para o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a Virada “é uma experiência de urbanidade”. “Levá-la para o autódromo é transformá-la em um show banal”, o que demonstra “a compreensão torpe que o novo prefeito tem do evento e seu desinteresse em se abrir à ideia de ocupação do espaço público que vinha se desenvolvendo”. Além dessa mudança de rumo, outra, para ele, se anuncia: “A Virada em Interlagos, que o novo prefeito já anunciou que vai privatizar, vai ao encontro de interesses comerciais. Ele provavelmente já tem parceiros interessados nesses lugares, que vão se beneficiar da valorização do autódromo como espaço de eventos. É uma comercialização total”, opina.
Ativistas também rejeitam as intenções de Doria. Depois de organizar uma petição online, A ONG Minha Sampa, uma rede paulistana de alerta e mobilização, interrompeu a coletiva de André Sturm para se manifestar contra que “o fim da Virada tal como a conhecemos”. O objetivo com isso, segundo um porta-voz da rede, Leonardo Milano, é inclusive pressionar para que o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) promova o tombamento da Virada como um patrimônio cultural imaterial de São Paulo. “A Virada não é pão e circo, como o novo prefeito parece pensar”, afirma Milano.
O mesmo tom elevado circula pelas redes sociais desde segunda-feira. Um evento que circula há alguns dias promove a Virada Cultural na Casa do Doria para maio de 2017 no Facebook, com milhares de confirmações e compartilhamentos. Também já foi criada a Virada Clandestina – iniciativa organizada pelo grupo virtual A Paulada Diária, que convida os paulistanos a criarem uma programação autônoma no centro com coletivos culturais.
A nova Virada Cultural gera dúvidas também do ponto de vista estrutural. Enquanto no ano passado ela mobilizou um público de milhões de pessoas (a Secretaria de Comunicação não divulga números oficiais, alegando ser um evento aberto, coletivos urbanos falam em três milhões) com atividades no centro e em bairros da periferia, o autódromo tem capacidade apenas para 80.000 se configurado para shows como o Lollapaloza ou corridas de Fórmula 1. Doria, no entanto, não especificou ainda nenhuma mudança efetiva no formato, limitando-se a dizer que haverá “maior comodidade” e que irá disponibilizar mais linhas de ônibus 24 horas para suprir a região de transporte. Em relação à segurança, principal queixa em relação ao evento, nada foi declarado.
"Lixo vivo" e "perifa"
A questão da Virada também acabou se transformando em uma crise na comunicação do prefeito eleito a um mês de ele tomar posse na Prefeitura de São Paulo. E tudo foi iniciado pelo próprio Doria, que desatou a controvérsia sobre o evento que se tornou marco da cidade, uma das raras iniciativas que passa há 12 anos de gestão em gestão.
Toda a polêmica teve início quando o tucano mencionou a Virada Cultural em uma fala dirigida a empresários na Fecomercio (Federação do Comércio de São Paulo) na segunda-feira. Nela, o futuro prefeito se referiu à cidade como “lixo vivo” e adiantou o que planeja para a próxima edição da Virada em Interlagos: “Serão 24 horas de eventos, com segurança e sem os últimos transtornos que vimos nos últimos anos”, disse.
Um dia depois, o plano do novo prefeito foi matizado por André Sturm, que declarou através de sua assessoria de imprensa que apenas os grandes palcos passariam a Interlagos. Doria recuou na sequência, aderindo ao discurso do secretário, mas insistindo no autódromo: "Nós vamos ter a Virada Cultural concentradamente em Interlagos, mas vai acontecer também nas unidades da Prefeitura de São Paulo como o Theatro Municipal, a biblioteca Mário de Andrade e em teatros privados que serão convidados a participar ".
Engrossando o caldo da confusão, Fabio Santos, vice-presidente da agência de comunicação CDN e secretário escolhido por Doria para assumir a área de Comunicação da prefeitura, afirmou na terça-feira que um dos motivos para levar parte da Virada ao autódromo é “a galera que vem da perifa”. “Na Virada, o que acaba acontecendo – me perdoe a crueza – é que você tem uma galera que vem da perifa, alguns organizados para fazer isso", declarou à Folha de S.Paulo. “Você deve ter visto em alguns momentos aqueles arrastões que eles fazem nas ruas transversais que ligam a praça da República ao viaduto do Chá”.
Coletivos da periferia de São Paulo – cerca de 40 grupos – reagiram imediatamente, publicando no Facebook um manifesto em que defendem a descentralização de recursos públicos e criticam a transferência da Virada para um “espaço murado”. "Antes mesmo de assumir a pasta, Fábio Santos já criminaliza os moradores das 'perifas', atribuindo a nós arrastões e outros crimes", escreveram.
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