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Um único bairro turco acolhe 300.000 refugiados sírios

Basmane, bairro da cidade de Izmir, no oeste da Turquia, abriga 300.000 imigrantes sírios

Crianças curdas jogando na parte alta de Basmane.
Crianças curdas jogando na parte alta de Basmane.Giacomo Maria Sini
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Na esquina da Gaziler Caddesi, se você quiser uma garrafa de água, Emre, o vendedor de kebabs, te ensina a pedir em turco, árabe e curdo. Até o mais ínfimo conhecimento desses três idiomas é uma espécie de passaporte para entrar no bairro de Basmane, na cidade turca de Izmir. Basmane, afastado das grandes avenidas modernas de Alsancak, a vitrine dessa urbe laica e republicana que durante anos votou majoritariamente no CHP — o partido de centro-esquerda fundado por Atatürk — e de Kemeralti, o bazar mais tradicional, com suas cores e seus aromas de especiarias, conserva a alma multicultural original de Izmir, a cidade em que gregos, armênios, europeus e turcos viveram em harmonia antes do catastrófico incêndio de 1922.

Depois do acordo sobre emigração assinado entre a União Europeia e a Turquia, mais de 300.000 imigrantes sírios de origem curda e árabe que fugiram dos recentes conflitos procuraram refúgio em Izmir, juntando-se aos curdos do sul da Turquia e aos romanis que já residiam aqui desde os tempos do império otomano. Basmane se apresenta como um emaranhado de ladeiras que sobem pelo morro entre velhas casas pintadas, algumas delas em ruínas, transformadas em fedorentas lixeiras. A parte superior de Basmane, aos pés do castelo de Alexandre, o Grande, chama-se Kadifekale. Seus barracos construídos ilegalmente — denominados em turco gecekondu (literalmente, “construído à noite”) — são habitados principalmente por curdos da região de Mardin, que agora sofre com a guerra entre o Estado e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla em turco), de modo que não é estranho ver pichações elogiando Öcalan ou as Unidades de Proteção Popular (YPG na sigla em curdo). A área situada acima do castelo foi demolida recentemente depois dos muitos projetos de urbanização e elitização que o Governo turco vem aplicando em todo o país nos últimos anos.

O coração de Basmane é Kapilar, um espaço social inaugurado há um ano onde todas as semanas são organizadas oficinas para crianças, aulas de turco e inglês, apresentações culturais e de comidas típicas na Cozinha Aberta e se oferece, graças a voluntários, auxílio jurídico e de idioma. O centro está também a disposição das múltiplas associações que ajudam os refugiados de Izmir. O objetivo é superar o isolamento e não só potencializar a inclusão dentro dos grupos étnicos de curdos e árabes que vivem no bairro, mas também facilitar encontros com os próprios turcos. “O importante é estabelecer relações de confiança com a vizinhança e a cidade, e isso leva muito tempo”, explica uma moradora que trabalha em Kapilar.

Depois do acordo com a União Europeia e o fechamento das fronteiras, uma proporção muito elevada de refugiados agora opta por ficar na Turquia, com a esperança de um dia obter a nacionalidade

O Grupo Kapilar, que funciona dentro do centro, mas é independente dele, também pretende fomentar o debate sobre temas que na Turquia soam quase como heresia, como o feminismo, a ecologia e os direitos das minorias. No piso superior do centro, o trabalhador têxtil de origem afroturca Yalcin dirige sozinho a coleta e a distribuição de alimentos e roupas para os mais necessitados do bairro. Mostra uma lista dos materiais exigidos pelas escolas públicas, produtos de marca fora do alcance de muitas famílias. “No bairro, onde existem normas sobre o trabalho infantil, a presença de refugiados agrada a muitos, porque lhes pagam metade do salário de um trabalhador turco, por isso é importante incentivar essas famílias a mandarem seus filhos à escola”, afirma Yalcin, “que não está isento do racismo que frequentemente desemboca em ataques; muitos turcos acreditam que o Estado ajuda mais os refugiados que os nacionais”.

Depois do acordo com a União Europeia e o fechamento das fronteiras, uma proporção muito elevada de refugiados agora opta por ficar na Turquia, com a esperança de obter a nacionalidade um dia, mas, como diz o voluntário Selin, os problemas são muitos, tanto os econômicos como os relacionados com o sistema educativo e a falta de documentos. E um dos principais obstáculos é o idioma. “Para os sírios há escolas especiais, mas não para os curdos”. Muitas vezes, explicam-nos, algumas ONG pró-governo tentam provocar conflitos entre ambos os grupos.

No bairro continuam operando muitas associações sem fins lucrativos. O Prasis é um grupo de músicos que percorre Basmane ensinando música especialmente a mulheres e crianças, frequentemente com instrumentos doados pelos cidadãos. Waha quer oferecer auxílio médico e psicológico a mulheres em particular, e se encarrega de distribuir medicamentos, papel higiênico e xampu tanto no bairro como em acampamentos informais como Torbali. Julie, uma jovem holandesa que decidiu ficar na Turquia para colaborar com as organizações humanitárias depois de terminar seu programa Erasmus, diz que ainda existem acampamentos extra-oficiais, mas são transferidos com frequência de um lado a outro para desviar a atenção dos jornalistas. Às vezes os proprietários pagam à polícia para garantir que escolherão esse campo em vez daquele, e assim facilitar o emprego dos imigrantes como diaristas em plantações de hortaliças espalhadas por todo o país.

Não é fácil contatar as famílias que vivem em Basmane. Depois do golpe de 15 de julho, que aqui se viu principalmente pela televisão, muitos têm medo de jornalistas e fotógrafos em Izmir. Como alguns centros de assistência foram fechados sob acusação de manter laços com os líderes do golpe, existe entre os refugiados uma tendência geral de demonstrar sua adesão ao Governo participando de atos públicos. Nour, uma jovem síria de 27 anos, de origem palestina, não tem medo e nos convida a entrar em sua casa pintada de azul. Perdeu a mobilidade nas pernas devido a uma infecção, mas conseguiu escapar de Damasco com a mãe e o irmão. Sonha em chegar à Alemanha, onde talvez possa fazer uma cirurgia na coluna, e quem sabe até consiga continuar seus estudos de direito penal. Nour está muito decidida: “Um dia visitarei o Vaticano, eu adoro as igrejas. No Líbano estudei três anos em uma instituição cristã”.

Enquanto fala, o telejornal mostra a retomada de Aleppo pelas forças de Assad. Ouvem-se metralhadoras e bombardeios. Então Nour deixa de falar com seu entusiasmo habitual e pede amavelmente a sua mãe que mude de canal. Do outro lado do pequeno cômodo se ouve uma chamada pelo Skype, que o irmão atende, sentado no sofá durante horas: é o pai de Nour, que continua em Damasco. Poucas palavras, muitos sorrisos e muitíssimas expectativas.

Basmane se apresenta como um emaranhado de ladeiras que sobem pelo morro entre velhas casas pintadas, algumas delas em ruínas, transformadas em fedorentas lixeiras

Naser é um ex-soldado iraquiano de 50 anos que chegou em 2014. Dois de seus seis filhos têm imunodeficiência e um tem câncer possivelmente devido às armas químicas usadas pelo Estado Islâmico. Vive em condições precárias em Buca, outro subúrbio da cidade. “Não podia ficar em Basmane, diz, porque as crianças precisavam de mais luz e o ar era pouco saudável. Aqui os aluguéis são mais altos, 500 libras por mês [140 euros], e tenho que pagar eletricidade e gás. Por sorte, os vizinhos nos ajudam com a comida”. Uma das crianças está há meses na cama. Seu corpo recusa qualquer medicação e os médicos locais perderam a esperança. “Talvez tivesse uma oportunidade se conseguíssemos chegar à Holanda. Ali tenho um irmão com nacionalidade holandesa, mas o Governo turco não nos deixa ir, porque apresentamos a solicitação de refugiados aqui. Estou há meses tentando contatar os escritórios das Nações Unidas, mas não me respondem”, diz Naser.

Segundo a legislação turca, antes de o pedido de asilo de cada um seja examinado, os refugiados podem ficar temporariamente alojados em um dos 20 acampamentos de oficiais estabelecidos em 28 cidades da Turquia — como Izmir — na longa espera pelo reassentamento em outro país. Em nenhuma circunstância os solicitantes de asilo podem deixar a cidade designada, e o pedido de sair do país quase nunca é aceito, porque muitos estão registrados na Turquia como refugiados desde antes do acordo. Por outro lado, o Governo turco não garante nenhuma assistência segura.

Em Izmir também há historias de refugiados menos dramáticas, como a de Aisha, uma jovem síria de 21 anos que, como domina o turco, ajuda seus compatriotas com os trâmites burocráticos; ou a de Youssef, curdo de 24 anos, procedente de Qamishlo, que depois de passar dois meses nas prisões de Assad, conseguiu por fim continuar seus estudos de medicina na universidade da cidade. As ruas que cercam a estação ferroviária de Basmane são um verdadeiro bazar, com restaurantes, barracas e atividades organizadas por sírios. Os preços são mais baixos que em outros locais, e talvez os que sentem nostalgia por Damasco e Aleppo, destruídas durante a guerra civil, encontrem certo consolo nessas ruas. Agora quase desapareceram as vitrines que mostravam coletes salva-vidas para quem cruza o Egeu, que os refugiados agora costumam chamar de “mar Morto”. Enquanto para alguns, como Youssef ou Aisha, Izmir começou a representar uma oportunidade de reconstruir seu futuro, para outros, a Europa e o sonho da liberdade estão ainda mais distantes.

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