Jeremías Gamboa destrói o mito do escritor
Nome forte da atual cena peruana, Gamboa defende “livros que nascem de feridas” e o autor pé no chão No Instituto Cervantes, em SP, ele apresentou o romance ‘Contar tudo’, lançado no Brasil pela Objetiva
Busque desesperadamente uma boa história para contar. Depois de encontrá-la, sofra para redigir cada linha, reescreva o fruto desse esforço algumas vezes e, quando tiver algo razoável nas mãos, submeta o manuscrito às críticas ferozes de quem entende de literatura. Quando seu livro for finalmente publicado, apague os rastros desse caminho tortuoso que o converteu em um autor, afinal o importante é manter o mito do talento literário extramundano. Ou não: faça como Jeremías Gamboa, um dos autores peruanos mais celebrados no atual panorama das letras latino-americanas, e exponha cada gota de sangue e suor que derramou, mostrando que o ofício de escritor nada mais é do que isso – um ofício. Mas um dos que valem a pena.
Dessa maneira ultrarrealista e tortuosa nasceu o romance autobiográfico de Gamboa, Contar tudo, lançado em português no Brasil pela editora Objetiva. O livro, que ele escreveu depois de lançar a coletânea de contos Punto de fuga (Alfaguara), foi elogiado por escritores como o Nobel peruano Mario Vargas Llosa. Talvez ainda melhor do que isso, alcançou um vasto número de leitores no Peru e no resto da América hispânica através de cópias autênticas e de outras tantas pirateadas. Sua história é a de Gabriel Lisboa, um jovem limenho de origem humilde, estudante de jornalismo, que relata seu caminho até se afirmar no mundo como escritor, transformado pela literatura. É a vida de Jeremías Gamboa (Lima, 1975), transformada pela ficção.
“Acredito nos livros que nascem de uma ferida. Quem escreve partindo desse lugar sincero tem muito mais chances de conseguir algo bom. Mas esse caminho eu descobri a duras penas, tendo que abandonar essa ideia romântica que tanto se difunde sobre a literatura”, disse Gamboa em um encontro organizado pelo Instituto Cervantes em São Paulo, a poucos dias de participar da Feira do Livro de Porto Alegre, em outubro. Fã de música, inclusive de música brasileira, ele conta que escreveu embalado por canções de Lou Reed e Caetano Veloso, entre outros compositores e intérpretes que “me ensinaram a estar bem comigo mesmo”. “Uma vez, em Lima, vi um show do Caetano na TV. Ele cantava com aquele sorriso escancarado no rosto, orgulhoso da sua condição de mestiço. Foi uma lição para mim. No Peru, a mestiçagem não se celebrava até bem pouco tempo. É um fenômeno recente”, relatou o escritor, filho de camponeses de Ayacucho que migraram para Lima.
Mas não todos os passos de Gamboa dizem respeito a ele mesmo. O escritor, colaborador do EL PAÍS, faz parte de uma geração de jovens autores na faixa dos 40 que alcançaram certo sucesso nacional e internacional nos últimos anos. Dela fazem parte nomes como Renato Cisneros, Santiago Roncagliolo, Daniel Alarcón e Gabriela Wiener – esses dois últimos, autores convidados para a Festa Literária de Paraty em 2015 e 2016, respectivamente. Em comum, há entre eles poucos aspectos a conformar um único estilo literário. Mas Gamboa enxerga um boom peruano e tem uma teoria a respeito dele: “Todos nós crescemos numa época marcada pela violência, nos anos 70 e 80, e começamos a escrever em um momento favorável economicamente para o Peru. Em outras palavras, havia, de um lado, as inquietações e, de outro, mais adiante, as condições de publicar”.
Outro contexto que amplia sua voz é a forte tradição peruana de romances sobre jornalistas e o jornalismo. A primeira parte de Contar tudo é uma descrição precisa da experiência de Gabriel em diferentes redações – tema que passeou pelas obras de outros conterrâneos seus, que também se debruçaram sobre jornalistas que se tornam escritores. “Um dos grandes romances do Peru é Conversa na Catedral, de Vargas Llosa, em que temos também personagens que são jornalistas, que gostariam de escrever e não escrevem. Há também um romance de um autor chamado Jaime Bayli, Los últimos dias de la prensa, em que o personagem, um adolescente, começa a trabalhar em um jornal diário no momento em que ele começa a entrar em colapso, e esse colapso é fundador para sua vida”, disse Gamboa ao jornal gaúcho Zero Hora.
Para ele – que foi editor da famosa revista peruana de jornalismo narrativo Etiqueta Negra, mas que há algum tempo abandonou totalmente as redações – a falta de máscaras literárias, em tempos que não muitos dizem apreciar a autoficção, mostrou-se um caminho não só viável como frutífero: “Contar tudo me permitiu continuar contando”, diz ele sobre o segundo romance, ainda sem data de lançamento.
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