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Joselia Aguiar: “O importante é colocar a literatura em pauta”

Historiadora fala sobre desafio de tornar a literatura alicerce de uma sociedade pragmática

Josélia Aguiar, historiadora e jornalista cultural, é presença assídua na Festa Literária de Paraty desde o início do evento – um dos primeiros e atualmente o de maior destaque no calendário literário nacional. No ano em que a Flip completará 15 anos de vida, ela mudará de lado, passando da plateia à curadoria da festa.

Josélia Aguiar.
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Em 2005 e 2006, a editora Ruth Lanna foi responsável pela programação, que homenageou Clarice Lispector no primeiro ano e Jorge Amado no segundo – mantendo, na opinião de Joselia, um olhar natural para a diversidade nas mesas de debate. Além de “reforçar o diálogo da literatura com outras artes”, é exatamente isso o que essa baiana radicada em São Paulo pretende, como disse ao EL PAÍS por telefone.

Pergunta.  Qual você espera que seja o seu maior desafio nesse cargo?

Resposta. Sou jornalista de livros desde que a Flip começou. Acompanhei o começo do evento, que se tornou referência para todas as outras festas que sugiram no país. Hoje, meu maior desafio é inventar possibilidades, surpresas, para que a Flip continue sendo referência, para que outros curadores tenham ideias a partir do que vai acontecer na Flip. O ponto é esse: como mudar algo que já tem um formato que dá tanta identidade e que permitiu que ela persistisse?

"O ponto é esse: como mudar algo que já tem um formato que dá tanta identidade e que permitiu que ela persistisse?"

P. Uma das críticas feitas quando a programação anterior saiu foi que não havia escritores negros, porque os convites feitos não deram certo. Quanto você arriscaria para criar essa representatividade?

R. Sem dúvida, vou chamar autores negros do Brasil e do mundo. Já tenho muita curiosidade por eles, que fazem parte da minha formação pessoal e profissional. Não sei, do ponto de vista de números, como a gente consegue proporções iguais. Acho que a proporção homem e mulher é mais garantido da gente conseguir. Mas estou muito atenta. Já tenho uma lista 10 ou 15 autores preferidos, entre os quais há naturalmente muitos negros.

P. Você pretende imprimir uma marca como curadora? Que caminhos quer seguir?

R. Quero muito fortalecer a dimensão literária e reforçar o diálogo com outras artes. As novidades vão girar em torno desses dois eixos. Gostaria de criar uma programação que ofereça essas possibilidades. Penso em mudar alguns formatos de mesas, incluir elementos de iluminação, cenografia, música dentro da programação principal. E também no território de Paraty.

P. Outra crítica permanente às festas literárias de mesmo formato é que elas são elitistas. O que você pensa a esse respeito?

R. Tem a possibilidade de ver as mesas por Internet, o que já amplia muito o acesso. De qualquer lugar do mundo, você assiste aos debates em casa. Mas isso não é, claro, como estar em Paraty. A experiência de quem está lá é outra. E é isso que queremos fortalecer: a pessoa se deslocar até Paraty, ter atividades paralelas como extensão da programação... Quanto a ser elitista, de fato as pessoas têm custos, mas também não podemos pensar que não possa existir uma oportunidade dessas. Já fui à Flip como jornalista, como estudante... Há opções para que não seja uma experiência cara. O importante, a meu ver, é que o evento coloca a literatura em pauta – nos jornais, na Internet, nas conversas. Isso tem um valor imenso, para a própria literatura e para que os leitores fiquem atentos a autores, livros, ideias e linguagens. Nesse ponto, acho que a Flip contribui muito para formar um movimento ao redor das pessoas comuns. A gente tem muitas opções de debate dentro da universidade e entre nós, que acompanhamos o universo dos livros. Mas há muitas pessoas que vão a Paraty e que normalmente não têm esse contato no dia a dia.

P. Vivemos um período de crise não só econômica, mas política e de ânimos, dado o difícil cenário social. As pessoas querem saber de literatura, quando a vida vai por esses caminhos?

R. Vou torcer para que elas procurem mais literatura. No meu entendimento, é o caminho para, com um livro na mão, abrir sua percepção, em vez de ficar amordaçado e triste. É justamente nesse momento mais complicado no mundo, não só no país, que a literatura pode funcionar como um alicerce mesmo. O caminho hoje nas cidades, sobretudo, tem sido de um pragmatismo muito grande. Acho que temos que recuperar – e a Flip dá essa possibilidade também – o aspecto lúdico, tanto que tem festa no nome. Também, no sentido antropológico, de lidar com livros de uma maneira informal. É algo que está presente na concepção da Festa Literária de Paraty e que precisa estar mais em evidência para ser praticado. É aquele momento do calendário em que você pode ir lá conversar sobre livros e autores.

P. A poesia parece funcionar na Flip, mas, ao mesmo tempo, muitas pessoas torcem o nariz para poemas. E há quem diga que “a poesia faz com que as pessoas se sintam excluídas”. Você concorda?

R. Mesmo quem não está acostumado a ler poesia e não se sente tão familiarizado com a linguagem poética a ponto de percebê-la completamente, acaba por ficar surpreendido pelo tipo de suspensão que é capaz de causar um poeta quando fala ou lê seus versos. Talvez o impacto seja até maior para quem não é acostumado a ler poesia e, de repente, se vê fora desse cotidiano mais pragmático e imediatista. É uma dimensão de compreensão e sensibilidade que às vezes não alcançamos no dia a dia. Acho que as mesas fazem sucesso por isso.

P. Há conflitos, a seu ver, entre as editoras brasileiras e a Flip? Alguns editores se incomodam com o que acreditam ser uma concentração de grandes editoras na programação do evento.

R. Tenho muita curiosidade a esse respeito. No Brasil, temos hoje muitas editoras independentes importantes, que estão apresentando coisas novas. O que acontece é que quando você quer chamar grandes nomes, gente que ganhou prêmio Nobel etc., essas pessoas são publicadas, em geral, por grandes editoras – que têm grande capacidade de impressão, de divulgação. Sobre a concentração dos outros anos, prefiro não comentar. Posso reforçar esse cuidado de que a gente não está olhando para o catálogo de uma editora só.

P. Quais são as mesas mais memoráveis da Flip até hoje, para você?

R. São várias. A do Lobo Antunes, a da Svetlana Aleksiévich, a do Amos Os com Nadine Gordimer... A Flip de homenagem a Carlos Drummond de Andrade foi especial. Os poetas subiam ao palco para recitar Drummond, foi inesquecível.

P. Sua biografia de Jorge Amado está prestes a sair. Como fazia José Saramago, muitos escritores internacionais o citam como o maior candidato brasileiro ao prêmio Nobel de literatura. Você concorda?

R. Ele era muito questionado sobre isso. E sempre citava alguém que merecia sair candidato antes dele. Um Nobel teria sido importante naquela época, para dar visibilidade à literatura brasileira. Mas tem muito escritor importante que não recebeu o prêmio. É algo bom, mas não é a única medida de qualidade.

P. Qual é a importância, no contexto atual, de uma mulher assumir a curadoria da Flip – com o destaque que o evento tem?

R. Sem dúvida, é muito importante que as mulheres assumam postos e posições. Fico feliz de ser essa pessoa neste momento, na Flip – que, é bom lembrar, teve a Ruth Lana como curadora em 2005 e 2006. Foram edições com muita diversidade. Do ponto de vista numérico, as mulheres tiveram um ganho muito visível recentemente, em diversos setores. Para mim, é importante não reproduzir nenhum dos padrões normativos – de gênero, de cor, sociais, regionais... Como curadora, terei a preocupação não só de garantir esse equilíbrio numérico, como também de pensar maneiras de escapar desses padrões.

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