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A paixão pelo detalhe do García Márquez cronista

Jornalista recorda o processo de produção do livro "Notícia de um sequestro", publicado há 20 anos

Javier Lafuente
Gabriel García Márquez em maio de 1996
Gabriel García Márquez em maio de 1996Santi Burgos

Dario Arizmendi, naquela época e ainda hoje diretor do programa 6AM, da rádio Caracol, chamou de lado Luzangela Arteaga, que nem sequer completara 30 anos de idade, puxou-a para fora da cabine do programa e, sem rodeios, disse: “Sou muito amigo do Gabo, ele está preparando uma coisa especial, não sei o que é, mas me pediu para indicar uma pessoa detalhista, discreta, alguém especial. Pensei em você. Amanhã mesmo você vai para Cartagena”.

-- Assim, de uma só tacada, o mestre entrou em minha vida.

Arteaga lembra, em uma tarde do inesgotável outono de Bogotá, já com 51 anos, como chegou então à cidade do Caribe colombiano, ligou para o telefone que Arizmendi lhe havia dado e foi até a casa “totalmente branca” de García Márquez. Naquele dia, deparou com um homem “muito sério, frio, muito diferente do que viria a ser dali em diante”. O Nobel colombiano a convidou a entrar e ambos se dirigiram diretamente para uma mesa de trabalho.: “Olhe, estou trabalhando nisso aqui”, disse ele, antes de ler para ela aquilo que seria o rascunho do primeiro capítulo de seu próximo livro, Notícia de um sequestro, cujo lançamento completa, agora, 20 anos. Nos dois anos seguintes, Arteaga seria a sombra sempre presente na produção da reportagem com a qual Gabo voltava ao jornalismo.

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Maruja Pachón e seu marido, Alberto Villamizar, tinha proposto a García Márquez a ideia de escrever um livro com base na experiência dela durante o sequestro de que fora vítima dois anos antes. O escritor já estava bastante avançado no primeiro rascunho quando se deu conta, como ele mesmo relata na introdução ao texto, de que não faria sentido desvincular aquele sequestro dos outros nove que haviam ocorrido no mesmo período, em uma colômbia castigada pelo narcotráfico e submetida aos desmandos de Pablo Escobar, personagem que atravessa implicitamente toda a obra.

É nesse momento que Arteaga, bastante cautelosa ao falar sobre o livro nesta comemoração de seus 20 anos, passa a ocupar um papel fundamental. “Naquele dia, na sua casa, ele me contou os detalhes infindáveis que queria comprovar”, lembra a jornalista. “Para ele, o fato de os protagonistas de eventos tão espantosos se abrirem para ele foi maravilhoso”. Mas isso não bastava. Gabo queria mais. “Precisava ambientar aquilo que lhe relatavam, o que havia do lado de fora, confirmar até o mais mínimo detalhe, saber quanto frio estava fazendo, os semáforos que existiam por perto, os tiros que foram dados. Queria saber absolutamente tudo. Essa foi a minha tarefa ao longo dos dois anos que se seguiram”.

Depois de fazer incontáveis entrevistas, em que Gabo, como relata Maruja Pachón, insistia até a exaustão para fazer os personagens exporem todos os detalhes, sua prima-irmã e secretária particular, Margarita, transcrevia as horas todas de gravação. A partir disso, ele se reunia com Arteaga: “Um encontro com o mestre era sinônimo de tarefas para dois meses”. Os dois se punham a revisar as anotações sobre as transcrições e a falar sobre os cenários. Sobre os detalhes. Sempre os detalhes. Foi nesses momentos que Arteaga se deu conta da grandeza do Nobel. “Não havia espaço para dúvidas, e, quando isso acontecia, íamos em frente até checar tudo. Se não conseguíssemos fazer isso, aquilo não entrava no livro”.

O apego de Gabo às minúcias não tinha limite. “Ele queria ir à casinha onde Maruja e Beatriz tinham ficado, queria entrar no banheiro... Ou entrar no carro de onde elas foram tiradas e levadas depois para se encontrar com Marina. Elas tinham contado, como aparece no livro, que conseguiam respirar e ver alguma coisa. Ele queria saber exatamente o que. Fui atrás desse carro durante dois anos, mas foi impossível achar”, lembra Arteaga. Embora hoje ache graça, foi um trabalho exaustivo de verificação, em que tinha de se empenhar profundamente. “Eu vivia angustiada, não podia haver nenhuma imprecisão, tive o cuidado de fazer com que tudo o que eu informava a ele fosse acompanhado de alguma documentação”, relata, mostrando alguns papeis que ainda guarda: recortes de jornais, revistas, documentos, solicitações oficiais... Nem tudo aquilo foi utilizado. Alguns itens estavam ali por mera curiosidade, como o resumo que teve de fazer para ele das novelas que Pacho Santos, ex-vice-presidente da Colômbia, assistia no seu cativeiro.

Durante aqueles dois anos, a jovem Arteaga não podia contar nada aos seus colegas de profissão, aos quais abordava com detalhes como se fossem perguntas inocentes de uma jornalista inquieta.

García Márquez com os alunos da Escola do EL PAIS em 1996.
García Márquez com os alunos da Escola do EL PAIS em 1996.GORKA LEJARCEGUI

As jornadas de trabalho ao lado de Gabo tinham hora para começar, mas nunca se sabia quando acabariam. À medida que o livro se concretizava e a confiança entre os dois aumentava, sustos podiam acontecer a qualquer momento. Arteaga deixava de lado tudo o que estivesse fazendo, como em um domingo em que, depois de dar o almoço às filhas, ficou no telefone até tarde da noite. “Ele me ligou do México. Estivera com Beatriz e ela tinha lhe contado o detalhe do perfume que um dos sequestradores tinha lhe dado e que ele a chamara de ‘meu amor’. Estava totalmente indignado. Vivenciou tão intensamente o que ouviu de seus protagonistas, incorporou tanto aquilo, que chegou a sentir a mesma raiva e a mesma frustração”.

Duas décadas se passaram, e Arteaga voltou a tirar o pó da importante documentação que guarda daquele período. Ela falará sobre tudo isso na próxima quinta-feira (29) em Medellín, durante as jornadas do prêmio organizado pela Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Iberoamericano, criada pelo próprio escritor. Será uma maneira de comemorar o vigésimo aniversário da crônica que ele leu pela primeira vez diante de um grupo de alunos da Escola do EL PAÍS, em Madri. Aqueles dois anos foram uma lição de jornalismo de que Arteaga jamais esquecerá. Como também não o fará em relação a um de seus últimos encontros com Gabo. Pouco depois do lançamento de Notícia de um sequestro, Dario Arizmendi soube que o escritor e jornalista estava prestes a pegar um avião. “Vá até o aeroporto e faça uma entrevista com ele”. Arteaga chegou, trocou cumprimentos carinhosos com Gabo e lhe falou da missão que tinha:

-- Ora, não vou responder mais perguntas suas –disse ele, dando risada.

-- Mestre, pelo menos não pode me culpar por ter tentado.

-- Claro que não. Eu a culparia se você não tivesse tentado.

Uma festa de histórias

Uma festa de histórias para mentes curiosas é o lema da quarta edição do Prêmio García Márquez, que será realizado entre a quinta-feira 29 de setembro e o sábado 1º de outubro pela fundação criada pelo próprio Nobel colombiano, com sede em Cartagena e inspirada na Escola de jornalismo UAM/EL PAÍS. Na reta final para a realização do plebiscito que significará uma inflexão na história recente da Colômbia, a segunda cidade do país será envolvida pelo jornalismo. Martin Baron, diretor do Washington Post, será o principal convidado. Os temas abordados pelos presentes serão a paz, música, literatura e jornalismo latino-americano. O EL PAÍS, que comemora seus 40 anos, terá um estande, exibirá um documentário sobre o golpe de Estado de 23 de fevereiro de 1981 e promoverá várias oficinas de jornalismo nas escolas.

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