_
_
_
_
_

Bienal de Cinema Indígena: a narrativa de um povo contada pelos próprios índios

Festival exibe, a partir desta sexta, 53 filmes dirigidos por representantes de comunidades brasileiras

Alice Fortes (Divulgação)

Um passeio pelo circuito de filmes de qualquer cidade, em qualquer semana, mostra: cinema é, na maioria arrebatadora das vezes, coisa de homem e de brancos. Costumam ficar de fora das salas comerciais as vozes femininas e de outros grupos socialmente ladeados, como os povos indígenas – que, só no Brasil, representam 305 etnias. A Bienal de Cinema Indígena, que acontece em São Paulo de 7 a 12 de outubro, quer interferir nessa realidade exibindo 53 filmes feitos por cineastas índios – 11 deles produzidos por mulheres.

Mais informações
Pedro Casaldáliga, o bispo que enfrentou a ditadura em nome dos índios
Impeachment abre novo capítulo no conflito da área indígena mais desmatada do país
A professora indígena que revolucionou as escolas rurais

Na abertura, que acontece às 17h desta sexta-feira no Centro Cultural São Paulo, dois filmes de peso sobre temáticas indígenas foram convidados: O abraço da serpente, filme colombiano dirigido por Ciro Guerra que ficou na disputa final do Oscar 2016 de melhor filme estrangeiro e Martírio, documentário de Vincent Carelli sobre a luta histórica dos guarani-kaiowá, premiado no recém-concluído Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Também se apresentarão paralelamente o Coral Guarani e a cantora indígena Djuena Tikuna, acompanhada pelo violão do marido Diego Janatã. Ambos são de Manaus. 

A mostra, que aconteceu pela primeira vez há dois anos com o nome de Aldeia SP, tornou-se agora oficialmente uma Bienal e acontece tanto no CCSP como em CEUs da periferia da cidade. Idealizada pelo líder indígena Ailton Krenak, ela pretende apresentar propostas diferentes do cinema tradicional, reforçar a importância de filmes que trazem o discurso direto de seus realizadores, representantes de culturas ancestrais, e revelar as circunstâncias em que eles operam. “Eles estão acostumados a ver um outro tipo de cinema, um cinema transcendental. É gente que está acostumada com imagens que não são controladas. Eles se relacionam com imagens descontroladas. É uma revolta do olhar", define Krenak.

Foram selecionados clipes de música, ficções e documentários realizados nos últimos seis anos e de diferentes extensões. Muitos têm legendas em português e reivindicam temas, histórias e personagens marginalizados ao longo do tempo – o que os reveste de uma urgência permanente. "São filmes que você pode ver daqui a 500 anos, porque afinal de contas vão estar falando sobre um assalto que aconteceu há 500 anos”, opina Ailton Krenak, um mineiro nascido na região do médio rio Doce que também coordena o evento. Também levam ao extremo a ideia de que o cinema é uma arte coletiva, já que a cooperação é um valor que sobrepõe a competição nessas comunidades. Exatamente por isso, os coletivos de audiovisual dos guarani-kaiowá não costumam participar de festivais de cinema tradicionais.

Índia diretora, atriz e personagem: Zahy Guajajara, protagonista de 'Zahy - Uma Fábula sobre o Maracanã'.
Índia diretora, atriz e personagem: Zahy Guajajara, protagonista de 'Zahy - Uma Fábula sobre o Maracanã'.

Para os curadores do projeto, o protagonismo feminino atrás ou diante das câmeras é outro destaque desta Bienal. ”As mulheres indígenas ocupam maior espaço no cinema, porque sua afirmação de independência cresceu nas aldeias e o seu protagonismo no movimento indígena já se tornou marcante”, afirma Rodrigo Arajeju. Na visão de Pedro Portella, “elas quebraram esse preconceito de que mulher não pode fazer cinema porque tem filhos e cuida da casa”.

Prova disso é o documentário Não gosta de fazer, mas gosta de comer, da tukana Maria Cidilene Basílio junto com a baré Alcilane Melgueiro Brazão. Aos 27 anos, Alcilane pegou uma câmara pela primeira vez para registrar por uma semana o trabalho na roça de dona Irene, 58 anos, moradora da comunidade Santo Antônio, no município de Barcelos, a 405 km de Manaus. O resultado é um registro sensível de sobre o método de plantação original dos povos do Alto Rio Negro, no extremo norte do Amazonas. “A dona Irene só falava em Nheengatu. A neta dizia que só ia para o roçado se a avó não falasse nessa língua. Foi quando eu respondi: ‘Não gosta de fazer, mas gosta de comer’. Decidimos dar o título”, disse Alcilene em entrevista à Amazônia Real, uma agência de notícias independente, ligada a questões da Amazônia e aos povos que habitam a região.

Não há estética que abarque toda a produção indígena recente. As linguagens são diversas, assim como os métodos

Não há estética que abarque toda a produção recente retratada pela Bienal de Cinema Indígena. Para Pedro Portela, as linguagens são diversas e os métodos também, e o único fator que os une é a simplicidade dos equipamentos utilizados (muitos deles foram filmados com celular). “Os Kayapó, os Maxakali e os Yanomami não editam muito seu material, preferem sequências grandes. Já os Baré gostam de mais cortes, uma montagem mais picotada. Os guarani-Kaiowá e os tikuna fazem videoclipes. Os primeiros, inclusive, cantando hip-hop, que é uma extensão de sua luta pela terra”, relatou o curador à mesma agência.

Além de dar visibilidade aos filmes, outra vantagem da mostra 100% indígena é servir de plataforma para demandas específicas dos grupos – como o estímulo à produção através do Estado. “Mesmo com uma produção expressiva, a Ancine [Agência Nacional do Cinema, principal organismo de fomento de produção cinematográfica do país] nunca fez um edital sequer para o audiovisual indígena. Nem permite que produtoras e associações indígenas registrem seus filmes com a emissão do Certificado de Produto Brasileiro (CPB), o que possibilita a exibição dos filmes no cinema e na TV aberta. Por isso, o audiovisual indígena ainda é marginal, sobrevive sem esses milhões desta agência que privilegia uma visão publicitária e pouco comunitária”, criticou Portella à Amazônia Real.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_