Brasil, uma novela ruim
Não houve uma batalha política, mas sim a aposta na mudança de um estado das coisas que atingia ou podia atingir grandes interesses econômicos e que, de forma lamentável, contou com o apoio explosivo de várias de suas vítimas
As telenovelas brasileiras sempre se guiam por um código dramático e ético: embora os heróis passem por terríveis dificuldades e recebam os mais duros golpes, ao final a justiça e a verdade sempre saem vitoriosas. É por isso que elas são telenovelas, e fazem sucesso nas mais diferentes culturas. Mas a realidade, como sabemos, costuma avançar por meio de outros mecanismos, mesmo quando se trata da realidade brasileira. Devo confessar que, quando quase todo mundo, ao analisar racionalmente o desenvolvimento do processo de destituição da presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, antevia o seu resultado, eu mantinha, romanticamente, alguma esperança em uma mudança da sentença anunciada. Talvez por uma deformação profissional, eu confundia a realidade com o código das telenovelas. Agora que o famoso impeachment se concretizou e Dilma foi tirada do seu cargo, o ocorrido me parece tão política e humanamente instrutivo que, apesar de tudo o que já se escreveu a respeito, atrevo-me a enfiar a minha colher, contrariando até mesmo o meu costume de não dar opinião sobre realidades cujos meandros mais profundos eu não domino, já que não participo do seu dia a dia. Por isso, atrevo-me, aqui, a expor algumas ideias que me atormentam e que têm me tirado o sono.
Não é segredo para ninguém que a corrupção é um mal quase endêmico nas sociedades latino-americanas (embora não apenas nelas). E o fato de se julgar um presidente por ter participado de atos desse tipo me parece uma decisão exemplar. No caso específico de Rousseff, porém, até onde pude ler e compreender, o seu pecado não se encaixa nessa categoria, e sim naquilo que poderia ser classificado como um mau uso dos fundos públicos, não com objetivos de ganho pessoal, como é hábito, mas para manter em funcionamento algumas políticas adotadas pelo seu Governo e que ela considerou prioritárias.
A primeira coisa que parece curiosa, nessa lógica, é que uma quantidade significativa dos juízes que decidiram o destino da ex-presidenta enfrenta processos por corrupção pura e simples; são alvo de investigações em curso que, se levadas a cabo e julgadas com a mesma contundência com que se apreciou a administração de Rousseff — e é assim que deveria ser, em se tratando de justiça —, poderiam leva-los até mesmo à prisão. Se não todos, pelo menos alguns deles. Nem que fosse para se continuar a dar o bom exemplo.
Também não é segredo, ao longo de todos esses meses em que tanto se falou da crise política brasileira, o fato de terem ocorrido erros políticos e estratégicos por parte da ex-mandatária, os quais estiveram por trás das fricções e rupturas que atingiram a coalizão interpartidária que a sustentava. Mas equívocos desse gênero acontecem todos os dias nos gabinetes governamentais do mundo inteiro, e as crises conseguem ser solucionadas com o debate político, e não com o julgamento e a condenação aplicados no caso de Rousseff.
Tamanho empenho para tirar do poder a ex-presidente e, com ela, o Partido dos Trabalhadores, ao qual Dilma pertence, deve esconder, portanto, outras razões menos claras e visíveis. Pois as toneladas de mesquinharias e de ódio acumulados nas altas esferas da política brasileira têm motivações mais obscuras: a vingança e o empenho para frustrar um projeto político, ou, como ouvi dizerem, “um projeto de país”.
Uma quantidade significativa daqueles que julgaram a ex-presidenta enfrenta processos por corrupção
A radicalização dos partidos e dos senadores contra Rousseff trouxe consigo o mau cheiro de uma revanche, destinada a desmontar uma política social que, nos anos de governo do PT, definiu para si um objetivo fundamental: melhorar a vida dos brasileiros em geral e dos mais pobres e marginalizados em particular. Sem dúvida, Lula e Dilma cometeram erros em suas gestões, e sob seus mandatos houve casos de corrupção, nos quais, ao menos até o momento, não se provou a sua participação. Mas os dois presidentes, e também não há dúvida sobre isso, trabalharam em favor daquele grande objetivo econômico e social. No mínimo o estimularam muito mais do que quase todos — ou do que todos — os presidentes anteriores desse país. E os dados mostram isso.
Como é possível, então, que tantos brasileiros, muitos mais do que aquilo que se poderia chamar de oligarquia ou dos inimigos reunidos nos partidos contrários a essa política, tenham participado do solapamento do prestígio de Rousseff e, nesse sentido, viabilizado a sua condenação?
No caso dos primeiros, os motivos são claros. Mas no que se refere ao restante dos brasileiros que se opunham ou criticavam a gestão de Dilma, as coisas se complicam, pois não apenas a classe média, mas também muitos trabalhadores, inclusive moradores de favelas, participaram dessa demolição. Poder-se-ia dizer que a crise econômica e a capacidade reduzida de lidar com ela influíram na percepção desse setor da população, mas existem outros dois elementos que me parecem mais instrutivos: em primeiro lugar, a facilidade com que os meios de comunicação e a propaganda conseguem manipular o pensamento das massas; em segundo, a sempre presente ingratidão humana, impulsionada, neste caso, pelas ambições pessoais nem sempre realizadas.
Inúmeras vezes se argumentou que a destituição da presidenta aconteceu nos marcos do sistema legal e respeitando-se a Constituição. E as duas afirmações podem, até devem estar corretas. Mas também não deixa de ser correto afirmar que os ritos processuais e a Constituição foram grosseiramente manipulados para se operar uma vingança. Se inicialmente o rosto de Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara e detonador do impeachment, e agora o de Michel Temer, elevado à dignidade da posição presidencial, foram identificados como os protagonistas do processo, todos nós sabemos que os dois apenas cumpriram um papel que os ultrapassa e em que são utilizados para dar conta do real objetivo: mudar o rumo político e social do país.
O que se travou no Brasil, assim, não foi uma disputa partidária, nem mesmo política: foi uma aposta na mudança de um estado de coisas que atingia ou podia atingir grandes interesses econômicos e que, de maneira lamentável, contou com o apoio explosivo de muitas das vítimas desses interesses econômicos. Agora, enquanto a História avança e começa a reunir argumentos para realizar seus julgamentos definitivos, o Brasil e sua democracia vivem momentos obscuros. O fato de que os ritos legais e a Constituição tenham sido os instrumentos usados para levar a cabo aquilo que muitas pessoas no mundo consideram um golpe de Estado parlamentar é uma certeza dolorida. Mas também uma lição de como podem ser frágeis alguns instrumentos do contrato social e do papel que as massas, quando acionadas, podem desempenhar — como a própria História já mostrou em várias oportunidades.
Rousseff e seu projeto são condenados enquanto Trump e seu anti-projeto nos espreitam
No final, além do dolorido sentimento de frustração, muitos de nós comprovaremos mais uma vez que é mais fácil escrever um final feliz para uma telenovela do que para a realidade de um mundo em que se condena Dilma Rousseff e o seu projeto enquanto Donald Trump e o seu anti-projeto nos espreitam. Isso, para mencionar apenas um exemplo dentre outras tantas realidades assustadoras que nos cercam.
Leonardo Padura é escritor.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.