Leonardo Avritzer: “Sociedade não acredita no Temer, mas está cansada de se mobilizar”
Para cientista político, há interrupção da expansão de direitos iniciada em 1988 com constituinte
No final do ano passado, Leonardo Avritzer lançou o livro "Impasses da Democracia no Brasil", pela editora Civilização Brasileira. Muito antes de qualquer desenlace mais definitivo na crise política, foi uma reflexão rápida sobre o ponto em que o país se encontrava e como havia chegado até lá. Agora, com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff e cerca de dois meses completos de Governo Temer, Avritzer amplia sua reflexão em entrevista ao EL PAÍS, tendo em vista os acontecimentos dos últimos meses. Abaixo, você lê os principais trechos da conversa com o cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Pergunta. Para você, qual é a principal marca desses dois meses de Governo Temer?
Resposta. Já é possível dizer que ele ficará marcado na História do Brasil como um momento de inflexão que pode muito bem ser representado por dois pontos. O primeiro é a edição da medida provisória 726, que extinguiu uma série de ministérios, como o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, que era representante de uma clara ampliação da cidadania. Claro que alguém pode falar do custo de se manter um número alto de ministérios, mas eu acredito que essa é uma falsa questão, pois neste caso, por exemplo, o seu custo, comparado com o benefício de ampliação de direitos, é muito baixo. O segundo ponto é que há uma adaptação do Executivo ao padrão político do Congresso Nacional. No Brasil, essas duas instituições são historicamente muito diferentes. O Executivo sempre foi mais ativo, mais preocupado com a essência das políticas. Um exemplo disso é a própria criação do ministério que eu mencionei. Já o Congresso, que é parceiro do Executivo em alguns momentos, tem uma agenda muito própria que é relacionada ao local, ao clientelismo, à negociação no varejo. O Governo Temer tem mostrado uma adaptação do Executivo a essa política do varejo. De certo modo, ele está se consolidando como o fim do que podemos chamar de Nova República.
P. Como assim?
R. A Nova República, que vai da redemocratização até os dias de hoje, é um período marcado, de certo modo, por um pacto de ampliação de direitos inscritos na Constituição de 1988. A criação do SUS, por exemplo, remete aos anos Collor, depois há durante o FHC uma expansão do financiamento e com o Lula a ampliação da assistência social. Quer dizer, todos os Governos da Nova República, ainda que de modos diferentes, caminham na direção da ampliação de direitos. E aí também entra o papel importante que o PMDB teve em todos esses anos. Apesar de extremamente heterogêneo, tendo apoiado simplesmente todos os presidentes desde a redemocratização, o PMDB foi parte ativa durante a ampliação de direitos. O que fica marcado em 2015 é que o PMDB começa, pela primeira vez, a ser majoritariamente contra a agenda de ampliação de direitos. Nos dois primeiros meses de Governo interino isso fica claro com episódios como o recente imbróglio envolvendo a possível nomeação de um militar para a Funai ou, outro exemplo, com a ida do Alexandre Frota ao MEC para conversar sobre Educação. Também poderia citar os questionamentos feitos ao SUS logo nos primeiros dias de Governo. Então, na verdade, quem chega a este Governo são os setores mais conservadores do PMDB que adquiriram uma hegemonia nos últimos dois anos. Ou seja, o fim da Nova República é representada também pelo fato do PMDB ter rompido essa relação entre centro e esquerda que ele encampou durante todo esse período.
"Há uma adaptação do Executivo ao padrão político do Congresso Nacional, à política de varejo"
P. E ao que se deve essa inflexão conservadora dentro do PMDB em sua opinião?
R. É uma coisa que emerge em junho de 2013. Quer dizer, naquele ano, o movimento começou no campo da esquerda, numa esquerda mais à esquerda do que o Governo Dilma. Só que em São Paulo, foco inicial, o Movimento Passe Livre não politizou o que estava acontecendo, a pauta deles era restrita à questão do transporte e tarifa. Quem politizou isso? Foram movimentos conservadores e de direita que já existiam e que encontram naquela mobilização uma forma de criar corpo. É simbólico, por exemplo, que o Movimento Brasil Livre teve sua página de Facebook criada exatamente em junho de 2013. Depois teve a campanha do Aécio Neves em 2014 que adquiriu uma tonalidade mais conservadora do qualquer outra anterior do PSDB. É verdade, por exemplo, que o Serra, em 2010, trouxe forte a questão do aborto, mas aquilo não ganhava o corpo que vimos ganhar depois. Esse movimento conservador continuou se organizando, alcançou maior expressão em 2015 com a adesão da FIESP e grandes empresários e, por fim, foi alinhavado por um líder: o Eduardo Cunha. Antes de junho de 2013, a agenda conservadora estava lá, mas ela não ganhava expressão pública, depois, começou a ganhar. O PMDB encampou isso.
P. Mas há quem avalie que o PMDB sempre esteve com quem está mais forte. Há mesmo uma inflexão nesses últimos dois anos?
R. Só que desde a redemocratização ele esteve nesse eixo da centro esquerda. Em 1988, na constituinte, por exemplo, ele foi majoritário. O único momento em que existiu um único partido com maioria no Brasil desde 1985 foi entre 1986 e 1990, período em que o PMDB encampou a elaboração da Assembleia Nacional Constituinte e ali você tem uma forte e muito importante ampliação de direitos. Por isso, acredito que há uma quebra clara de modo de agir. Durante o FHC, por exemplo, o PMDB poderia ter ficado contra a estabilização da moeda, mas não foi.
"Antes de junho de 2013, a agenda conservadora estava lá, mas ela não ganhava expressão pública, depois, começou a ganhar. O PMDB encampou isso"
P. E o Eduardo Cunha, em sua opinião, é a face mais clara dessa ruptura?
R. É, mas não é só ele. Na formação do Congresso atual, essa inflexão conservadora vem do fato do financiamento de campanha das eleições ter ficado completamente fora de controle. Hoje o congresso representa apenas interesses econômicos que, em determinado ponto, encamparam esse discurso conservador que emergiu de forma mais forte depois de junho de 2013. Há, por um lado, uma inflexão no Congresso que vem do interesse econômico e, por outro, do fortalecimento da pauta moralista representada pelo fortalecimento da bancada evangélica. O Cunha, no caso, junta essas duas vertentes. Ele é tanto de um quanto do outro.
P. Temer sempre manteve um forte discurso de ajuste fiscal. Há quem diga, contudo, que isso ainda não se reverteu em ações. O reajuste dos salários dos servidores públicos do Judiciário seria um exemplo disso. Como você enxerga a questão?
R. Nos últimos anos, o discurso de que o Estado cresceu demais ganhou papel fundamental no crescimento da pauta conservadora. Essa foi uma questão muito forte para entidades pré-impeachment, como a Fiesp. O Temer encampou isso. Mas qual é o problema para ele? É que a adaptação do Executivo ao Congresso é muito mais importante do ponto de vista político do que a articulação do Governo ao Mercado. Quer dizer, o mercado financeiro rompeu com Dilma em algum momento entre 2013 e 2014 e não voltou mesmo depois da nomeação do Joaquim Levy. Isso mostra que é mais importante ter uma relação sólida com o Congresso Nacional e algumas corporações, como o Judiciário, do que apostar apenas no mercado. E isso, inevitavelmente, significa aumento de gastos. Eu diria que na atual circunstância, o mercado está subordinado aos interesses do Congresso.
"Eu diria que na atual circunstância, o mercado está subordinado aos interesses do Congresso"
P. O Governo Temer parece ter encontrado alguma estabilidade nas últimas semanas. Você acredita que Dilma tem alguma possibilidade de retornar a presidência?
R. Pequena, mas sim. A questão central é a seguinte: o atual Governo interino é frágil pela maneira como Temer chegou à presidência, maneira completamente questionável do ponto de vista político. Nunca é demais dizer que ele é um vice-presidente que articulou pela votação para a admissibilidade do impeachment. Imagina o Al Gore, por exemplo, posicionando-se sobre o pedido de impeachment do Clinton em 1998? É inimaginável. Há um problema forte de legitimidade, mas, nesse momento, há também uma fadiga generalizada. Não é que as pessoas estejam achando o Temer uma solução boa, não é isso e as próprias pesquisas mostram isso, mas acredito que a sociedade está cansada de se mobilizar. Acredito que, nesse momento, a única coisa possível de se dizer é que a presidenta tem pequena chance de voltar, mas que o Temer tem chances nulas de ser considerado ou lembrado como alguém que ofereceu uma solução positiva para o momento de crise.
P. O primeiro mês do Governo interino também sofreu um abalo muito forte pelo envolvimento de caciques do PMDB em escândalos de corrupção...
R. Sim, mas tudo que apareceu estava ligado à delação premiada do Sérgio Machado, de responsabilidade da Procuradoria Geral da República [PGR]. E o que aconteceu é que ao ter o pedido de prisão preventiva do Romero Jucá, Renan Calheiros e Eduardo Cunha negado pelo STF, a PGR sofreu uma derrota grande, ainda maior que a do juiz Sérgio Moro, em março. Naquela época, depois da divulgação de grampos, ele foi repreendido pelo STF por ter exorbitado suas funções. Bom, o que está acontecendo agora é que a partir dessa derrota da PGR, a Operação Lava Jato volta a ser protagonista, mas, por enquanto, ela tem mostrado mais do mesmo. Está tentando retomar investigações que apontem para esquemas de financiamento do PT na Petrobras. Qualquer outra coisa que poderia abalar o Governo interino não está sendo foco.
"Imagina o Al Gore, por exemplo, posicionando-se sobre o pedido de impeachment do Clinton em 1998? É inimaginável. Há um problema forte de legitimidade neste Governo"
P. Qual é o papel do Judiciário na crise política brasileira?
R. Eu acredito que essa crise começa no Congresso Nacional e na maneira com que ele muda sua relação com o poder Executivo. É uma crise que começa com a eleição do Eduardo Cunha e que enfraquece demais o Executivo. É a partir daí que é possível pensar no papel do Judiciário. Como ele atuou nesse último ano? De forma pouco ortodoxa. Impediu que a presidenta nomeasse ministros, só decidiu sobre o afastamento de Cunha da presidência da Câmara depois de quatro meses do pedido ter sido feito. Ou seja, o Judiciário entrou nessa crise com a credibilidade muito alta, mas se sujou ao longo do processo. Isso fica claro, por exemplo, na forma deliberada com que ministros do STF passaram a emitir suas opiniões publicamente sobre tudo. A crise não nasce por causa do Judiciário, mas, no momento em que ele entra nela, passa a fazer parte de tudo.
P. E o que esperar das eleições municipais deste ano?
R. Não vão ter grande influência no cenário nacional. A crise política brasileira está na organização das três principais instituições no nível nacional. A crise é entre o executivo e o Congresso com forte influência do Judiciário. É só nesse arranjo que ela pode encontrar uma possível solução. Mas acredito que as eleições locais vão expressar fragmentação extrema e insatisfação com os partidos protagonistas da crise: PT, PMDB e PSDB. Em São Paulo, a Erundina, por exemplo, deve crescer, porque o eleitorado tende a punir PT e PMDB. A questão, acredito, vai ser menos se o candidato é de esquerda ou de direita, e mais se ele não está envolvido direta ou indiretamente com a crise política.
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