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Morre Patricio Aylwin, líder da transição chilena

O primeiro presidente de um Governo democrático depois da ditadura de Pinochet falece aos 97 anos

O ex-presidente Patricio Aylwin, em 2004.Vídeo: EFE | EL PAÍS-QUALITY
Rocío Montes

Faleceu nesta terça-feira Patricio Aylwin Azócar, símbolo do século XX no Chile e uma das figuras de maior destaque do passado recente do país sul-americano, assim como o socialista Salvador Allende e o ditador Augusto Pinochet. Primeiro presidente da democracia chilena após 17 anos de regime autoritário e líder da transição, o advogado do Partido Democrata Cristão faleceu aos 97 anos em sua casa, ao leste de Santiago do Chile.

Apesar de não sofrer qualquer doença e de suas funções vitais não apresentarem problemas, a saúde do ex-presidente havia piorado significativamente no último mês. Levantava-se pouco e dormia a maior parte do dia, por isso sua família sabia que sua saúde estava precária. Em seus últimos dias, no entanto, não sentia nenhuma dor e estava calmo, feliz e tinha companhia. Até o fim mostrou-se preocupado com a esposa, Leonor Oyarzún, também de 97 anos, com quem esteve casado por 67 anos.

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Foi um político paradoxal e difícil de classificar. No início dos anos setenta, era inimigo da esquerda e um dos principais opositores dos mil dias do Governo socialista da Unidade Popular, liderado por Allende. O papel que seu partido, o Democrata Cristão, desempenhou no Golpe de Estado de 1973 ainda é motivo de debate no Chile. Durante a ditadura, no entanto, Aylwin se transformou em um dos principais inimigos do regime e foi um dos líderes que tornaram possível a aliança peculiar entre o centro e a esquerda, que derrotou o ditador através de um plebiscito. Após o fracasso de Pinochet nas urnas em 1988, quando o Chile ainda era uma nação de inimigos, os chilenos o encarregaram da difícil missão de ser o primeiro presidente da democracia. Assumiu o poder em março de 1990 e, com o ditador ainda no comando das Forças Armadas, liderou uma das transições mais complexas e bem-sucedidas da América Latina.

Tinha 54 anos quando Allende se suicidou no Palácio de La Moneda; 71 quando ele mesmo chegou à presidência; e 88 anos quando Pinochet morreu em uma clínica em Santiago, em 2006. Filho mais velho de uma dona de casa e de um jurista que se tornou presidente da Suprema Corte, nasceu na cidade de Viña del Mar, em novembro de 1918. Teve quatro irmãos, alguns com papel de destaque na vida pública: Andrés Aylwin, advogado de direitos humanos na ditadura e ex-deputado do Partido Democrata Cristão, e Arturo Aylwin, que comandou a Controladoria da República. Com a esposa teve cinco filhos e 17 netos, formando um dos clãs políticos mais importantes do país.

Patricio Aylwin, em 2012.
Patricio Aylwin, em 2012.JESÚS ABALO

Entre 1990 e 1994, como presidente, tentou avançar na medida do possível. Foi símbolo das duas décadas da democracia dos acordos, quando política chilena foi marcada pelo consenso entre setores divergentes. Mas sua Administração também conduziu medidas corajosas para restabelecer uma sociedade aberta e vencer a disputa excludente. "Não é possível uma transição bem-sucedida sem a reconstituição da verdade. E, por isso, um mês depois do início de meu Governo, anunciei a formação da Comissão Rettig para investigar violações dos direitos humanos", disse em 2012 ao EL PAÍS, em sua última entrevista. Tomou a decisão apesar do conselho de seus assessores, que recomendavam prudência, e a equipe, depois de nove meses de trabalho, concluiu que 2.296 pessoas morreram na ditadura. Aylwin pediu desculpas em nome do Estado, com a voz embargada, em um discurso televisionado que faz parte da memória coletiva do Chile.

Há anos estava afastado da vida pública, mas, apesar de sua idade, até 2015 continuava participando de algumas atividades protocolares na condição de ex-presidente. Respeitado pelos diferentes setores ideológicos, em seu silêncio parecia instalado em um lugar que transcendia o bem e o mal. À margem da conjuntura e dos conflitos de curto prazo, sua presença era requisitada em tempos de crise. Em dezembro passado, no entanto, uma queda em sua casa levou à sua internação com traumatismo craniano. Até então, Aylwin continuava sua vida normal de idoso ativo, incluindo a habitual reunião no Clube da União de Santiago, do chamado grupo de cardeais, ativistas do Partido Democrata Cristão de sua geração com os quais almoçava todas as quintas-feiras. Nunca havia faltado a uma reunião até a data do acidente. Desde então, sua saúde se deteriorou rapidamente, especialmente nas últimas semanas. Não saía de casa e seu estado de saúde piorou consideravelmente nas últimas horas.

Foi protagonista de um dos principais eventos que marcaram a história recente do Chile. Na década de setenta, conheceu Allende de perto: "Demonstrou que não era bom político. Se tivesse sido, não teria acontecido o que aconteceu", disse ao EL PAÍS. Também teve de conviver com Pinochet, que nos anos noventa ameaçou várias vezes a incipiente democracia. "Sabia parecer simpático quando queria. Era sarcástico e diablito, jogando a seu favor. Mas não foi um homem que obstruiu as políticas do Governo que liderei", disse na entrevista de 2012. O democrata-cristão, no entanto, resumiu sua opinião sobre ambos quando, em 4 de setembro de 1990, liderou os funerais de Estado do socialista. "Devo dizer francamente: se as mesmas circunstâncias se repetissem, voltaria a ser determinado opositor, mas os horrores e perdas do drama vivido pelo Chile, desde então, têm mostrado que tais circunstâncias não devem nem podem se repetir por qualquer motivo", disse o presidente naquele dia.

Com a morte de Aylwin, uma parte do século XX chileno também vai embora e, acima de tudo, independentemente da ideologia, uma prática política extinta. Numa época na qual as instituições democráticas carecem de legitimidade e as acusações de corrupção arrastam diferentes setores, a figura austera de Aylwin emerge como um raro exemplo, representando o Chile do passado. Morava desde 1956 na mesma casa, que não quis deixar quando se tornou presidente. Embora ganhasse dezenas de canetas, preferia as da marca BIC, de menos de dois reais. Gostava da comida caseira, especialmente algas de cochayuyo, e relutava em trocar de carro. Definia-se como um "animal político" e nunca deixou de pensar em seu país. "Convidado a propor algumas chaves para um Chile mais feliz, me atrevo a sugerir o seguinte: 1) Acabar com a pobreza extrema: que todos os chilenos tenham uma vida digna; 2) Aprender a respeitar nossas diferenças ideológicas. Pensar diferente não significa ser inimigo", escreveu um tempo atrás em um papel qualquer encontrado por sua secretária.

O Chile vai se despedir do ex-presidente com um funeral de Estado de três dias. Sua família planeja uma missa privada em sua casa. Da residência, o cortejo vai passar pela sede do Partido Democrata Cristão e pelo Palácio de La Moneda, onde a guarda presidencial prestará homenagens. Depois seguirá para o antigo Congresso de Santiago, símbolo da República, onde políticos e a população também prestarão homenagens. No terceiro dia, o cortejo fúnebre seguirá para o Cemitério Geral, onde sua família construiu um mausoléu. Nesse lugar, haverá uma cerimônia pública, onde está programado um discurso da presidenta Michelle Bachelet; em seguida terá início um funeral privado, apenas com a participação de pessoas mais íntimas.

Aylwin era católico, mas não beato. Às vezes, quando falavam de sua morte, a esposa Leonor lhe dizia: "No outro mundo, há o reencontro com a mãe, pai, irmãos". Com a incredulidade de quem viveu quase um século, Aylwin respondia: "Não teria tanta certeza".

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