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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A onipresença da política no Brasil

Existe preocupação com a forma como alguns grampos da operação Lava Jato foram autorizados pelo Poder Judiciário

O juiz federal Sérgio Moro.
O juiz federal Sérgio Moro.Eraldo Peres (AP)

Em 17 de março de 2016 dona Carmen acordou na unidade de terapia intensiva do Hospital Madre Teresa. Depois de uma cirurgia delicada e ainda sob o efeito da anestesia, ela fez uma pergunta que divertiu quem a acompanhava: “o Lula já foi preso?”.

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Minutos antes, o cirurgião perguntou se a cor da camisa de um de seus filhos era sinal de luto pela nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil. O desconforto causado pela nomeação e os últimos grampos telefônicos realizados pela operação Lava Jato tornaram a política algo onipresente até nos corredores dos hospitais de Belo Horizonte, cidade natal de Dilma Rousseff.

Em meio ao impacto midiático de vários telefonemas entre Lula e correligionários, há aqueles que veem com preocupação a forma como alguns foram autorizados pelo Poder Judiciário e divulgados ao público. Dois deles são particularmente polêmicos: o grampo de uma chamada entre Lula e Dilma quando a ordem judicial que o autorizava já havia expirado e a divulgação de um diálogo entre o ex-presidente e seu advogado.

Aos olhos da população, o que importa é o conteúdo das chamadas, não sua legalidade. Mas à luz dos princípios do Estado de Direito não se justifica a utilização de provas ilegais para fazer algazarra política contra um Governo corrupto. Assim entendeu a Ordem dos Advogados do Brasil, especialmente no que diz respeito ao monitoramento das conversas entre Lula e seu advogado.

Neste momento o ativismo judicial de Sérgio Moro está blindado pela convulsão política e social do Brasil

Assim que as conversas começaram a circular nos meios de comunicação, Dilma disse que somente o Supremo Tribunal Federal pode suspender a inviolabilidade das comunicações da Chefe de Estado. Em resposta, o juiz Sergio Moro comparou a divulgação das conversas com os grampos feitos contra Richard Nixon nos Estados Unidos, cuja Suprema Corte validou algumas provas produzidas dessa forma no Caso Watergate. No entanto, Moro não esclareceu que no exemplo norte-americano o próprio Nixon tinha ordenado vários grampos, razão pela qual não pôde alegar a ilegalidade das provas que pesavam contra ele.

Em um jogo diferente de comparações, vale lembrar o destino de um colega de profissão de Moro, o juiz Antoine Quentin Fouquier-Tinville, titular de um tribunal penal extraordinário criado durante a Revolução Francesa. Em 1794, alguns membros do referido tribunal foram acusados de condenar arbitrariamente centenas de pessoas à pena de morte, e de terem sido condescendentes com os excessos dos jacobinos. Foi assim que Fouquier-Tinville acabou na mesma guilhotina à qual tinha enviado a Rainha Maria Antonieta.

A comparação entre os juízes Moro e Fouquier-Tinville pode ser exagerada em relação à forma como cada juiz administrou a justiça em seus países. No entanto, sobram razões para desconfiar da postura que um eventual Governo pós-impeachment de Dilma manterá em relação à operação Lava Jato. Neste momento o ativismo judicial de Moro está blindado pela convulsão política e social do país. Algo semelhante aconteceu com o Comité de Salvação Pública em relação a Fouquier-Tinville durante o período mais turbulento da Revolução Francesa.

Aos olhos da população, o que importa é o conteúdo das chamadas. Mas à luz dos princípios do Estado de Direito não se justifica a utilização de provas ilegais

Em caso de impeachment, as três pessoas na linha de sucessão de Dilma foram mencionadas (Michel Temer) por delatores ou são sendo investigadas criminalmente (Eduardo Cunha e Renan Calheiros) no escândalo do Petrolão. Esse dado lança razões suficientes para desconfiar da tolerância de um eventual governo do vice-presidente Michel Temer em relação a um Poder Judiciário eficiente na luta contra a corrupção. Mas há outro dado mais sintomático do galanteio oportunista entre os proponentes do impeachment e os Hércules togados no Brasil. A campanha eleitoral da maioria dos membros da Comissão de Impeachment da Câmara dos Deputados recebeu milionárias doações de empresas investigadas na operação Lava Jato.

Entre 1989 e 2001, dona Carmen tinha Lula como candidato natural à Presidência da República em cada eleição que disputava. Os escândalos do Mensalão e o mais recente Petrolão a fizeram desprezar o Partido dos Trabalhadores e desconfiar da integridade ética dos demais partidos, especialmente o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) de Michel Temer. Uma das poucas figuras públicas que conseguiram passar pelo seu filtro de ceticismo se chama Sergio Moro. É por isso que o juiz que conduz a operação Lava Jato deveria evitar que a política seja onipresente também dentro do Poder Judiciário.

Melhor deixá-la em espaços inusitados como os quartos do Hospital Madre Teresa, onde dona Carmen brinca que a saúde do Estado brasileiro anda mais debilitada que a sua.

*Daniel Cerqueira é oficial de programa sênior da Fundação para o Devido Processo (DPLF). Twitter: @dlcerqueira.

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