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“O melhor que tenho a oferecer, além da minha música e a minha voz, é a verdade”

Diva da música brasileira, a cantora diz que não esperava chegar tão longe respeitando seus princípios

Marisa Monte no Rio de Janeiro.Vídeo: Edgar Costa
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Vozes femininas poderosas, como a de Marisa Monte (Rio de Janeiro, 1967), são um patrimônio da música brasileira. A voz tão familiar da cantora impacta, assim como sua imagem forte e singular, muito parecida à que ela tinha 27 atrás, quando debutou na profissão. Em meio ao verde do bairro carioca de Humaitá, com uma bela vista do Cristo Redentor, ela aparece na casa do seu empresário com olhos cobertos por grandes óculos de sol. Marisa gosta de encantar seu interlocutor, embora cultive fama de blindar sob sete chaves sua vida fora dos palcos.

Pergunta. No começo da sua carreira, você chegou a dizer que, para analisar seu trabalho, seria necessário se passar 20 anos. Superamos essa marca... Que balanço você faz?

Resposta. Nunca tive muita expectativa, a não ser trabalhar muito. Gosto do que faço – e continuo gostando. Acho importante manter o prazer, por isso comecei a fazer música. É o que me faz alternar momentos de muito trabalho, exposição e turnês grandes, com momentos de poder ouvir, compor, estudar. No fundo, é uma vontade de não perder essa relação prazerosa com a música, daquilo não se tornar algo mecânico, obrigatório, estimulado externamente. Nunca imaginei que chegaria tão longe com esses princípios. Fico feliz. É mesmo um trabalho de construção, de vida, mais do que de carreira.

P. Você é uma das cantoras brasileiras mais bem-sucedidas. As pessoas compram discos, escutam sua música, sabem as letras... O que garante todo esse sucesso?

R. O melhor que tenho a oferecer, mais do que minha própria música ou minha voz, é a verdade. É uma coisa que aprendi com os mestres do samba. Argemiro, um dos compositores da Velha Guarda Portela, tinha um samba lindo. Nos anos 70, aos 56 anos, ele foi levado ao encontro de Vinícius de Moraes e Chico Buarque, e alguém falou: “E aí, garoto novo, está começando, fez esse sucesso aí [A chuva cai, um sucesso de rodas de samba]... Vamos lá, faz uma música sobre essa garrafa”. Mas ele não sentiu nada, foi para casa e ficou mordido com aquilo. No dia seguinte, voltou com uma música: “Somente escrevo o que sinto/ Falo a verdade, não minto/ A culpada é a minha inspiração/ Não adianta eu forçar a minha natureza/ Se o melhor do samba é a sua pureza/ E eu forçando serei o meu fim”.

P. Você também funciona assim?

R. Acho que sim. Procuro, pelo menos, sair inteira, respeitar esse processo todo. Isso pressupõe um respeito às pessoas também.

P. De que maneira a televisão popularizou sua música? Mais de 20 canções suas foram trilhas de novelas em um país em que novela é quase religião.

R. A trilha sonora sempre foi importante para a novela, porque ela a cristaliza, ilustra as cenas e é uma maneira de se comunicar com o grande público. Mas não acho que ela seja determinante para o sucesso. Se a música for ruim, não vai funcionar porque está na novela. Se for boa, ela pode encontrar no meio novela um caminho maravilhoso para chegar ao seu público, de uma forma potente.

P. Você gravou com artistas hispânicos, coisa que nem sempre acontece no Brasil.

R. Sim, com vários. Recentemente, com a Julieta Venegas, o Gustavo Santaolalla... Gostaria de ter gravado mais. Acho que a música brasileira é um pouco diferente dentro do universo latino-americano, talvez por causa da língua. Entre México, Espanha, Venezuela, Chile, Uruguai, Argentina o intercâmbio é muito mais intenso do que com o Brasil. Mas temos muito em comum. Somos países jovens, adolescentes em crise [risos], com questões parecidas... Sinto a mesma distância em relação à África. A música brasileira e a africana são muito distantes, muito mais do que deveriam. No fundo, essas trocas ajudam possibilitam um autoconhecimento.

Vivemos em um mundo em que muitas vezes o artista acha que é a própria manifestação artística. A música nos ensina valores mais sutis do que o ritmo, os instrumentos... É uma das manifestações artísticas mais coletivas.

P. Com as novas maneiras de escutar música, você mudou sua maneira de produzir?

R. Todo mundo está estudando muito as novidades, e isso vai se refletir com certeza na produção. A gente se libertou do formato long play, digamos. Hoje em dia, você pode fazer um álbum, se a obra for um álbum, mas ela pode não ser. Estamos em plena revolução. E existe a questão da regulamentação. Não tem remuneração estabelecida na Internet, os mecanismos jurídicos ainda não estão estruturados – no mundo, não só no Brasil. A maneira de se consumir música se apresenta de forma muito predadora e também um pouco irresponsável em relação à criação, porque o músico tem que sustentar a produção. Um bom negócio tem que ser bom pra todo mundo. Por enquanto, para os criadores, o streaming é uma promessa, mas não ainda uma realidade.

P. Você esteve sempre à frente da sua carreira, mas também muito bem assessorada. Como é sua relação com seus produtores e conselheiros, como Nelson Motta e Arto Lindsay?

R. Procuro sempre me cercar de pessoas melhores do que eu. Em todas as áreas, porque acho que aprendo com todos. O Nelsinho e o Arto são meus amigos, pessoas com quem tenho prazer de conversar. Acumulei muita gente na minha vida. É algo de que me orgulho também... Devo ser boa parceira, porque tenho muitos parceiros de longo prazo. Não tenho grandes rupturas na vida, pessoas que jamais quero ver de novo.

P. Dizem que você leva sua carreira com disciplina quase militar, controlando vários detalhes.

R. Ninguém tem controle de nada, né? A vida não é bem assim. A única coisa que procuro averiguar é como estou me sentindo naquela situação. E acredito na minha intuição, a única coisa que tenho que pode me guiar. Ouço todo mundo, assim posso dar subsídios aos meus sentimentos e ver se aquilo que estou sentindo outras pessoas veem.

P. Mas às vezes você é criticada pela disciplina que mantém...

R. São estratégias. O que vou fazer daqui a cinco anos? Ou nos próximos dois anos? Você tem que ter estratégia para atravessar a rua e não ser atropelado. Isso não quer dizer que tudo vai ser cumprido ou dar certo. Calculo mais ou menos as coisas que faço. Talvez seja uma questão cultural, essa imagem selvagem que o artista tem em termos de criação. É uma visão romântica, porque ele não precisa ser um cara que não vê contrato, que não sabe de nada, vive pelado em uma banheira de espuma tomando champanhe e só pensa em prazer, porque nasceu cantando. Não! Vá perguntar a esses grandes artistas, todo mundo rala pra caramba. Veja o Mick Jagger. Ele corre 12 quilômetros todo o dia, tem um coreógrafo na turnê, uma pessoa que cuida da sua alimentação... Aí sobe no palco e arrasa com 73 anos. Ele se prepara para aquilo.

P. Nem sempre acontece no Brasil de um artista tomar as rédeas da sua carreira. Mas você foi cortando os intermediários.

R. Manter a liberdade é um valor importante. Eu penso: “O que que vale mais para mim, a minha obra ou um adiantamento?”. Então abro mão do adiantamento e negocio a obra. O que não vale para mim vai valer para quem?

P. Como é sua relação com a imprensa? Você é um desafio para qualquer jornalista, porque a imagem que existe é que não gosta de se expor.

R. Valorizo muito o trabalho da imprensa. Se estou aqui é porque acho que vocês estão fazendo uma coisa importante. A impressão pode ser contrária, mas dou muita entrevista. Interajo com o público pela Internet. Sou muito aberta, gosto de conversar, mas não estou disponível para falar da dieta da moda e de outros assuntos nos quais não sou especialista. Vivemos uma época de muita opinião. Temos que valorizar o espaço público que temos e não ocupá-lo com qualquer coisa.

P. As críticas negativas te preocupam?

R. Vejo as críticas como se viessem de um leitor comum. Não fico mastigando, lendo 10.000 vezes. Leio, mas não faço crítica da crítica. Minha função é deixar que se fale, seguir meu caminho e fazer minha música. Como um mesmo show pode ter críticas boas e ruins, acho que cada um fala um pouco de si também.

A maneira de se consumir música se apresenta de forma muito predadora e também um pouco irresponsável em relação à criação, porque o músico tem que sustentar a produção.

P. Você fez um show com o Caetano Veloso chamado Somos todos Amarildo. Por que resolveu se envolver com esse tema?

R. Um grupo de Direitos Humanos procurou o Marcelo Freixo, e ele nos trouxe todas as dificuldades que a família tinha. Toda a dificuldade que existe para ter informações sobre desaparecidos aqui no Rio. São muitos, mas não tem banco de dados, nem política para isso. Fizemos o show para apoiar a família e ajudar nessa questão. Hoje, passado um tempo, os fatos confirmaram que foi importante fazer isso.

P. Outro engajamento seu foi com o projeto Red Hot, voltado às pessoas com AIDS. Os artistas deveriam se engajar mais em causas sociais?

R. Existe essa expectativa em relação ao meio artístico, como se o cidadão comum não tivesse que fazer a sua parte também. O artista tem a obrigação, mas não porque é artista. Porque é um cidadão como qualquer um de nós.

P. No gancho desse projeto, você foi fotografada para o Calendário da Pirelli em 2013. Sua beleza é sempre muito comentada. De que maneira sua imagem transformou você em um mito?

R. Não é uma beleza tradicional. É estranha, particular, e funciona muito bem no palco, assim de longe [risos]... Fui convidada muitas vezes, mas nunca fiz trabalhos como modelo ou desfilei, nem fiz fotos de moda. Nunca estruturei minha carreira em função da imagem. É a imagem em função da música. Se a imagem ajudar na música, ótimo. Mas beleza é mais uma questão de luz: você pode ficar linda ou horrorosa. Depende do talento do fotógrafo e do olho de quem vê.

P. Você já chegou a dizer que as mulheres têm de se esforçar mais do que os homens e que nunca quis abandonar seu papel em casa em função do trabalho. Que importância tem falar do tema, torná-lo visível?

R. Esse é o grande desafio da mulher contemporânea, né? A gente não quer abrir mão de nada, quer uma vida plena, doméstica, com os filhos, e ao mesmo tempo também quer ter independência. A babá dos meus filhos vive a mesma coisa: tem um filho e trabalha. Vivemos sobrecarregadas, porque acumulamos mais funções. E os homens ainda estão se adaptando. Meu marido é sensacional, um cara maravilhoso, mas acho que ele é uma exceção.

Manter a liberdade acho que é um valor importante. Eu penso: “O que que vale mais para mim, a minha obra ou um adiantamento?”. Então abro mão do adiantamento e negocio a obra. O que não vale para mim vai valer para quem?

P. Você se considera feminista?

R. O que é ser feminista? Sou a favor de direitos iguais, isso é inquestionável. Mas não quero ser igual ao homem. Quero ser feminina e ter direitos iguais aos homens, com todas minhas diferenças e particularidades, com as riquezas e o potencial de ser mulher.Apoio totalmente os movimentos e vejo que existe um engajamento feminista bem radical, que é bem interessante. Mas acho que o importante é a parceria. Não é querer ser mais, é chegar junto.

P. Como você vê os acontecimentos que o Brasil está vivendo?

R. Com preocupação e esperança. É um momento de transformação. Gostaria que fosse profunda e estrutural, de cima para baixo. Mas vamos ver. A curto e médio prazo acho que teremos momentos difíceis, mas a longo prazo pode ser ótimo para o país. Acho bonito quando você vê todo o mundo [mobilizado]... Mas isso não é de agora. Em 2013, já chegamos a um limite de tolerância coletiva. Isso está evoluindo, e todo o mundo tem que fazer sua parte.

P. Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown aparentemente aceitaram o convite para reunir Os Tribalistas na abertura das Olimpíadas do Rio, mas você declinou. Por quê?

R. Vou estar em Portugal, porque tenho uma turnê marcada nessa época. Fiz minha participação em Londres, então acho que já contribui. Foi lindo, e a equipe, maravilhosa, me tratou muito bem. É um trabalho grande, que exige um engajamento digno da grandeza da coisa e envolve cerca de um mês e meio de ensaios. Tem tantos artistas bom neste país. Deixa para os outros também.

P. Qual a importância de celebrar 100 anos de samba este ano e reconhecer sua história?

R. Para mim, como carioca, o samba é a principal expressão musical. É importante, porque o samba deu voz a grandes artistas populares, e, através da temática deles, você tem contato com crônicas cotidianas. O samba é antigo, não tem só 100 anos. É uma discussão teórica, mas talvez ele não tenha nem nascido no Brasil. A data de gravação de Pelo telefone pelo Donga foi a primeira vez em que apareceu, em um label, a palavra samba. O gênero passou a ser reconhecido perante a indústria, e isso foi um marco, mas as primeiras gravações brasileiras já tinham alguns anos.

P. Como você vê o samba hoje?

R. Tem sempre essa discussão se o samba morreu ou não. Acho que ele está vivo no cotidiano, nas celebrações. Enquanto houver pessoas dispostas a se encontrar e cantar um repertório novo ou antigo e cultuar essas histórias, ele vai viver. Vejo uma geração que se renova, muito interessada em samba, novas composições acontecendo, fazendo parte das rodas. Vejo os sambas tradicionais ainda sendo lembrados e cantados, e isso tudo se misturar. Acho que é um gênero que tem uma importância inegável e seu espaço estabelecido. Não é só um estilo de música. É um meio de comunicação, de expressão e de manutenção da memória.

P. Você disse, em uma entrevista, que quer fazer música popular, mas com a aura de algo sofisticado. O que quis dizer?

R. Não parto desse conceito. Na realidade, não tenho preconceito com alta cultura, baixa cultura... Gosto de tudo, e isso se reflete naturalmente no meu trabalho. Não acho que uma coisa exclui a outra. Faço música, mas não para mim, e sim porque quero me comunicar. Ela vai muito além de mim e das pessoas, porque ganha um espaço próprio quando você consegue se comunicar. Vivemos em um mundo em que muitas vezes o artista acha que é a própria manifestação artística. A música nos ensina valores mais sutis do que o ritmo, os instrumentos... É uma das manifestações artísticas mais coletivas.

P. As parcerias musicais são algo bem brasileiro. Essas colaborações entre artistas famosos do Brasil é algo que você não vê em outros lugares.

R. Percebi o quão brasileiro era quando fiz Os Tribalistas. Para mim, sempre foi algo natural. Gil e Jorge, Rita Lee com Gilberto Gil, aquele disco do João Gilberto com o Caetano, o Gil e a Gal... Parecia normal. Com Os Tribalistas, demos [ela, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown] muitas entrevistas no exterior, e os jornalistas diziam “isso não acontece no meu país”. “Caramba”, pensei, “é um fenômeno brasileiro”. Tem alguns casos, como Frank Sinatra com Tom Jobim, mas não é tão frequente como na nossa dinâmica de criação.

P. Na nova geração, tem algum artista com que você se identifique mais? Que de alguma maneira lembre os seus inícios?

R. Tem muita gente legal, talentosa. Tem o Pedrinho Miranda, o Moisés Marques, a Teresa Cristina... O Mosquito é um compositor jovem maravilhoso. O Pretinho da Serrinha é um grande compositor também. Tem muita gente... Acho que é um cenário que se renova espontaneamente e constantemente.

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