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Macri apela à herança recebida diante do Congresso: “Nos levaram à pobreza”

O presidente argentino traça um quadro desolador da situação do país e culpa o kirchnerismo

O presidente da Argentina, Mauricio Macri, ao chegar ao Congresso nesta terça.
O presidente da Argentina, Mauricio Macri, ao chegar ao Congresso nesta terça.David Fernández (EFE)
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Mauricio Macri é um entusiasta de religiões orientais, de meditação, gosta de falar sobre a alegria, a felicidade, cita Nelson Mandela. Sempre positivo. Mas agora é o presidente da Argentina. Os problemas se acumulam, ele começa a sofrer um pequeno desgaste e reagiu no discurso de abertura do ano legislativo, perante um Congresso dividido, oferecendo aos argentinos um quadro desolador da situação do país, culpando duramente a herança recebida do kirchnerismo. “O modelo anterior nos levou à pobreza e à exclusão”, chegou a dizer o presidente entre os protestos dos deputados da oposição e o entusiasmo dos seus partidários, numa atmosfera de grande tensão política. Sem maioria absoluta no Parlamento, até agora o presidente vem usando o decreto executivo para levar a cabo importantes e polêmicas medidas de Governo – no final do ano passado, por exemplo, derrubou por decreto a lei que regulava os meios de comunicação e a telefonia na Argentina.

Macri está cercado agora por uma inflação descontrolada, acima dos 30% ao ano, em parte devido à desvalorização que realizou logo depois de chegar ao Governo, e da deriva de um país inflacionário há anos. É sua grande lápide, que pode afundar sua imagem. E por isso, quando mencionou a inflação, criou-se um dos momentos mais tensos no Congresso. “Existe inflação porque o Governo anterior a promoveu”, sentenciou o presidente. E então começou um grande tumulto. Metade da câmara, os macristas, ficou de pé e o encorajou com gritos de “Sim, nós podemos!”. A outra metade, os kirchneristas, gritou indignada com cartazes de protesto. “As empresas governam”. “Basta de demissões”. “Não ao tarifaço”. “Liberdade para Milagro Sala (uma dirigente social presa)”, se lia neles.

Os grupos de fiéis a Cristina Fernández de Kirchner estavam preparados para interromper o discurso de Macri. Embora seu filho, Máximo, que é deputado, não tenha comparecido à sessão, Andrés Larroque, um dos homens fortes do seu grupo, La Cámpora, se aproximou de Macri no meio de seu discurso para entregar-lhe uma foto de uma mulher com as costas cheias de ferimentos de bala de borracha. “Não mais repressão”, gritavam seus deputados. No meio de uma grande tensão, cada vez que o presidente falava de corrupção, Larroque mostrava cartazes diante dele: “Franco é seu pai”. “Caputo é seu amigo”. “Calcaterra é seu primo”. Todos eles são conhecidos empreiteiros de obras públicas.

A tensão atingiu um nível tal que o próprio Macri pediu “respeito à votação democrática”. Os kirchneristas exigiam aos gritos que ele os respeitasse, frente ao discurso duríssimo sobre a herança recebida. O presidente quer diferenciar-se em tudo de sua antecessora, desde o primeiro minuto. Inclusive nos detalhes. Se ela falou por quase quatro horas no ano passado no mesmo discurso de abertura das sessões parlamentares, ele só o fez durante uma hora. Tudo foi diferente. Se no ano passado havia milhares de pessoas enchendo a Praça do Congresso para aplaudir a ex-presidenta, dessa vez eram algumas centenas de macristas com bandeiras amarelas, enquanto os – também poucos – que queriam protestar foram isolados pela polícia em uma rua paralela.

Tudo reflete um país dividido, que votou 51% a 49% em favor de Macri. Mas o presidente tem agora a força dos recém-chegados ao poder, as pesquisas apontam um apoio próximo de 70% e ele precisava explicar claramente que herdou uma bomba para que os argentinos lhe deem uma margem antes de cair no desânimo frente à ausência de resultados. Março é o mês em que as crianças retornam à escola, as pessoas voltam à rotina normal de trabalho e começam a pensar nas contas, com um aumento de 30% ao ano dos alimentos – alguns, como a carne, subiram muito mais –, escolas particulares, aluguéis, gasolina e um aumento da luz que atinge 700%. O aumento do gás virá esta semana e será semelhante.

Nesse contexto, Macri optou por um discurso austero. “É preciso dizer de uma vez que os reis são os pais”, sentenciou um ministro macrista na saída do evento. O diagnóstico foi devastador, e o presidente prometeu publicar todos os dados para que os cidadãos saibam que país encontrou. “A primeira coisa que devemos fazer é reconhecer que não estamos bem, mesmo que isso doa”, disse. “Não podemos tolerar que num país como o nosso crianças morram de fome. 29% dos argentinos vivem na pobreza, 6% na extrema pobreza. 40% não têm rede de esgoto ou rede de gás. 3,8 milhões de argentinos que trabalham na informalidade. A Argentina é o terceiro maior fornecedor de cocaína do mundo. A educação pública hoje não garante a igualdade de oportunidades. A saúde pública tem enormes desigualdades. O modelo anterior nos levou à pobreza e à exclusão. Em 10 anos tivemos uma inflação acumulada de 700%”, disparou.

Macri foca sua estratégia em buscar mais margem política culpando o kirchnerismo. Mas isso tem outro risco: o presidente precisa de muitos votos peronistas no Congresso para aprovar o acordo com os fundos abutre que acaba de conseguir. A divisão da oposição peronista, em plena guerra interna pela sucessão, pode ajudar, desde que esse discurso duro não una o peronismo. “Estou confiante de que a responsabilidade primará sobre a retórica. Não pagar os abutres saiu muito caro. A dívida passou de 3 bilhões de dólares a 11 bilhões de dólares (cerca de 11,77 bilhões de reais e 43 bilhões de reais, respectivamente). Estimamos que não ter tido acesso ao crédito nos custou 100 bilhões de dólares e quase dois milhões de postos de trabalho que não foram criados”, lançou o presidente. Axel Kicillof, ex-ministro da Economia e maior responsável da guerra contra os abutres, se mexia irritado em sua poltrona de deputado. A Argentina entrou num novo tempo, mas por enquanto o Governo parte da demolição do passado para construir o futuro.

A composição do Congresso

Alejandro Rebossio

O peronismo kirchnerista e seus aliados, que entre 2011 e 2015 dominaram o Congresso, estão perdendo terreno. Desde que o liberal Mauricio Macri assumiu o cargo, há quase três meses, o grupo parlamentar foi desmoronando. Em fevereiro, a Frente para a Vitória (FpV), kirchnerista, perdeu 17 dos 101 deputados que tinha e ficou reduzida a 84, menos que os 92 do Cambiemos, a coalizão de Macri. Esses 17 passaram a formar o Bloco Justicialista, com o discurso de que supostamente desejam continuar sendo opositores, mas ao mesmo tempo pretendem colaborar para que o novo presidente argentino “tenha sucesso”. Espanta a rápida guinada no discurso dos líderes desse novo grupo como Diego Bossio, que até dezembro dirigia a Seguridade Social no Governo de Cristina Fernández de Kirchner e era um crítico feroz de Macri e dos jornalistas independentes.

Outros deputados que tinham sido aliados do kirchnerismo, os sete do grupo peronista Juntos para a Argentina e os seis da Frente Cívica da província de Santiago del Estero, começaram a dar sinais de aproximação de Macri. Vários desses ex-kirchneristas respondem a governadores provinciais que pedem fundos federais para o custeio de seus distritos e para a realização de obras públicas. Além disso, anseiam recuperar o acesso ao crédito internacional para financiar seus déficits e por isso se prevê que apoiem o novo acordo do Governo argentino com os “fundos abutre”, que acabaria com a suspensão de pagamentos em vigor desde 2014 e também abriria a torneira do financiamento para o Estado federal.

Com os votos dos ex-kirchneristas, Macri alcançou 122 votos na Câmara dos Deputados, faltando apenas sete para a maioria absoluta necessária para a aprovação de projetos de lei, como o acordo com os “abutres”. Deve, então, convencer os 36 peronistas anti-kirchneristas liderados por Sergio Massa e os oito do grupo Progressistas, liderado por Margarita Stolbizer. Na segunda-feira, Massa e Stolbizer acordaram uma agenda comum no Congresso, deram a entender que apoiariam o acordo com os credores, apesar de considerá-lo injusto, mas avisaram que pressionariam por uma redução do imposto de renda.

Mas toda lei também deve ser aprovada pelo Senado, onde a FpV permanece unida, com 42 assentos, mas até o líder da bancada, Miguel Pichetto, evidenciou diferenças internas ao defender um acordo com os “abutres”. É preciso ver como votarão os 25 senadores da FpV das 12 províncias governadas pela frente, todas necessitadas de recursos em um ano de contração econômica prevista. O Cambiemos tem apenas 15 senadores e precisa de 37 votos para aprovar projetos. Vai pedir apoio de alguns desses kirchneristas, dos dez peronistas anti-kirchneristas e dos dois do grupo Progressistas.

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