A morte agita o Oscar 2016
Oito dos 10 documentários concorrentes ao prêmio retratam grandes dramas e suas vítimas
Às seis da tarde, na praça principal do vilarejo. Finalmente, após nove meses de tentativas, Matthew Heineman tem um encontro marcado. Na realidade, o telefonema mais desejado veio quando ele já tinha perdido a esperança. A mulher de seus sonhos? Não exatamente. “Fomos recebidos por homens armados, que nos levaram até um campo abandonado. Ali fomos apanhados por outro carro, para irmos até o laboratório”. De repente, viu-se no meio da selva mexicana e da noite, filmando uma cozinha de metanfetamina a céu aberto. Assim como em Breaking Bad, mas de verdade. E conseguiu a abertura perfeita para Cartel Land, que concorre ao Oscar de melhor documentário, e que pode ser visto no iTunes ou, no mesmo domingo, em uma exibição na Cinemateca de Madri.
“Eu não tinha nenhuma experiência em cobertura de guerras. O filme todo foi uma aventura aterradora”, conta Heineman, por telefone. Porque ele se fincou com sua câmera em Michoacán, coração do terror no México, para mostrar como as milícias de autodefesa formadas por cidadãos comuns enfrentam com fuzis e coletes à prova de balas os cartéis e a ausência do Estado. Filmou torturas, sequestros e até acabou em meio a um tiroteio, sem deixar de filmar. Mostrou a guerra real, que ocorre por trás das manchetes dos jornais e das declarações oficiais. “Era uma história importante e eu sentia um enorme dever de relatá-la. Queria estar no meio do conflito e retratar o sofrimento das pessoas comuns”.
Muitos de seus adversários na festa deste domingo fizeram a mesma coisa. Isso porque os fios que unem oito dos 10 documentários (de curta e longa-metragem) candidatos ao Oscar se resumem apenas em tragédias: mortes, guerras e fracassos do Estado. Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom (disponível no Netflix) segue, pelas ruas de Kiev, a revolta da Ucrânia, entre explosões e manifestantes abatidos por franco-atiradores. Body Team 12 (da HBO) acompanha Garmai Sumo no trabalho: recolher os cadáveres dos mortos pelo ebola. E Last Day of Freedom conta a dupla viagem ao inferno de Manny Babbitt: ao Vietnã e, depois, ao corredor da morte. Há espaço até para a maior das tragédias: em Spectres of the Shoah, Claude Lanzmann rememora todas as dificuldades para rodar seus famosos documentários sobre o Holocausto.
No fundo, cada uma dessas produções teve uma filmagem assustadora. Enquanto o Ocidente assistia horrorizado à epidemia do ebola na distante África, David Darg viajou quatro vezes para a Libéria para retratá-la. Tanto que, ao voltar para casa, o diretor de Body Team 12 passou 42 dias em quarentena, tempo que ele aproveitou para montar seu curta-metragem. E Sharmeen Obaid-Chinoy visitou, no Paquistão, a prisão onde estavam detidos o pai e o tio de Saba Qaiser: ambos acusados de tentar matar a jovem de 18 anos, “culpada” de amar um homem de classe social inferior. “Eu faria tudo de novo”, solta o progenitor no filme. Afinal, os chamados “crimes de honra” são frequentes no país. Apesar de a diretora de A Girl in the River: The Price of Forgiveness esperar que, após a exibição de seu curta, esses incidentes diminuam.
Cinema para a mudança
Eis aqui outro aspecto que une esses cineastas. Eles confiam em gerar outro filme, desta vez na mente do espectador. E, assim, também graças ao Oscar, contribuir com seu grão de areia para um mundo melhor. “O cinema por si só não muda as coisas. Mas a gente pode começar a pensar e analisar um assunto de maneira distinta”, afirma Nomi Talisman, co-diretora de Last Day of Freedom. Em seu caso, ela quer que o público reflita sobre a pena de morte e a Justiça nos Estados Unidos. Sobre como é possível que um ex-soldado, com esquizofrenia e síndrome pós-traumática resultada da Guerra do Vietnã, seja abandonado à sua própria sorte até cometer um assassinato. Só então o Estado volta a se interessar por ele: para executá-lo.
“O mundo não é branco ou preto, justo ou errado. Manny fez algo horrível, mas voltou de uma guerra e não recebeu apoio algum. Um terço daqueles que se encontram no corredor da morte nos Estados Unidos é de ex-veteranos de guerra. A que se deve isso? O que podemos fazer?”, pergunta Talisman. A mesma ode às nuances se escuta na conversa com Heineman. Até mesmo Evgeny Afineevsky, diretor de Winter on Fire, afirmou em várias entrevistas que, por mais que filme a brutalidade da repressão, é um cineasta e não um juiz. “Não estou acusando ninguém. Meu papel não é criar justiça”.
Ainda assim, seu filme foi usado na investigação oficial do que ocorreu na Ucrânia. E A Girl in The River conseguiu fazer com que até o primeiro-ministro paquistanês, Nawaz Sharif, assumisse como prioridade a luta contra os crimes de honra. Há mais esperanças: Joshua Oppenheimer conseguiu, com seus documentários – O Ato de Matar, indicado em 2013, e O Peso do Silêncio, candidato agora, ambos disponíveis online – que a Indonésia finalmente fale do massacre de 1,5 milhão de pessoas ocorrido nos anos sessenta. Com todo o respeito, vale muito mais do que um Oscar.
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