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pec 215

Autor de laudo que questiona tribo foi expulso da Associação de Antropologia

Especialista questiona origem brasileira dos indígenas sem nunca ter visitado aldeia

A Fatma, órgão de licenciamento ambiental do Estado de Santa Catarina, não tem competência sobre a questão indígena, mas contratou no ano passado um antropólogo para desconstruir em apenas um laudo estudos que renomados antropólogos fizeram durante três décadas sobre a aldeia de Itaty. Os laudos são instrumentos vitais para reconhecimento das terras indígenas. Através de estudos minuciosos contratados pela Fundação Nacional dos Índios (Funai), os pesquisadores identificam se o território é ou não uma ocupação desses povos. Após análise na Justiça em todas as instância e contestação de todos os interessados, o Ministério da Justiça publica o reconhecimento. Por fim, cabe à presidência da República assinar a homologação.

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Edward Luz, antropólogo contratado pela Fatma, é antes evangelizador da New Tribes Mission Brasil, criada na década de 50 por missionários norte-americanos para “salvar os tribais não alcançados” pela Bíblia. Já eles alcançam os “Confins da Terra” – como relata o título da revista mensal da congregação. A New Tribes ergueu igrejas em 47 das 340 etnias brasileiras. Há obreiros de cristos no Senegal, Guiné, Costa do Marfim e Moçambique.

No site, o presidente da instituição Edward Luz, pai do antropólogo que tem o mesmo nome, justificou sua intenção: “Pensando em valores eternos, Jesus é o caminho, a verdade e a vida e ninguém vai ao Pai sem ele. É necessário que os índios ouçam Sua mensagem e é só Deus que pode manejar a política humana. Deus está edificando Sua Igreja e as portas do inferno não prevalecerão”.

Na luta contra o diabo, a pedagogia é aliada. A New Tribes possui duas escolas no Brasil para “ganhar almas para eternidade”. O Instituto Bíblico Peniel, em Minas Gerais, e o Instituto Missionário e Linguístico Shekinah, no Mato Grosso do Sul, preparam jovens para abandonar o conforto do lar em nome de Cristo. Mas o termo “mercado de almas” nem sempre é figurado.

A New Tribes foi expulsa de terras indígenas pela Funai em 1991, acusada de escravidão, exploração sexual e tráfico de crianças indígenas. O processo foi arquivado. Segundo a Funai, eles também foram acusados no final da década de 1980 de dizimar os Zoé, na região de Santarém, no Pará, que adoeceram com a presença dos invasores. Por fim foram denunciados por arregimentar almas ribeirinhas, de castanheiros e quilombolas para o trabalho braçal.

No livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, Kopenawa narra para o escritor Bruce Albert as experiências que teve com os missionários da New Tribes na infância. Ele viu seu povo ser dizimado por duas epidemias infecciosas provocada pelos obreiros. Por esse histórico, a Funai proibiu o trabalho da New Tribes Mission em diversas aldeias do Norte do país e Edward Luz, o filho, foi expulso da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

Edward também foi desligado por unanimidade do Núcleo de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade de Brasília. Entretanto, a Fatma o contratou, sem ele nunca ter publicado trabalho acadêmico sobre o povo Guarani. O presidente da Fatma, Alexandre Waltrick Rates, justifica que, assim como as referências de Edward são questionadas por alguns, há restrições do Estado quanto aos outros profissionais que fizeram laudos na área.

Em depoimento ao Ministério Público Federal (MPF), Edward admitiu que nunca entrou na aldeia Itaty, que não conhecia os Guarani do Sul do Brasil, que escolheu aleatoriamente cinco indígenas de outras terras para munir sua conclusão e que antes mesmo de desembarcar no Estado negociou com a Fatma a elaboração de um laudo contrário à demarcação. A tese vendida por Edward é que os indígenas da Itaty foram trazidos do Paraguai por ONGs e pela Funai para lucrar terras da União. (Sim, você já leu essa frase antes).

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A questão é que todos os moradores da Itaty são brasileiros, seus antepassados estavam ali antes do nascimento dos antropólogos, dos deputados, do governador e dos imigrantes europeus que aprenderam com eles o cultivo da terra e o ofício da pesca. Estavam ali antes do mundo ser dividido em países.

As raízes da guerra aos índios no sul

Aline Torres

Dia 5 de novembro de 1808, D. João VI autorizou por decreto a matança dos índios que viviam no Brasil quando os portugueses aqui desembarcaram. “Desde o momento em que receberdes esta minha Carta Régia, deveis considerar como principiada a guerra contra estes bárbaros Índios”, dizia o documento. Menos de 50 anos depois, o fundador de Blumenau (município a 152.9 km de Florianópolis), solicitou ao governador de Santa Catarina “a desinfecção completa do terreno entre Itajaí Grande e o Mirim, e a destruição e aprisionamento deste bando de rapinas”. Foi fundada a Patrulha dos Bugreiros, contratados pelo Governo para expulsar índios.

Segundo o antropólogo Silvio Coelho dos Santos, para legitimar a ação dos caçadores de Xokleng foi criado um sistema ideológico no qual os índios eram representados como vadios e ameaças a concretização dos ideais de “progresso” e “civilização”. Os bugreiros eram heróis. O governo e o povo os apoiavam e a imprensa os idolatrava.

No jornal Novidades, publicado em Itajaí em 1904, a preferência fica clara. “O chefe da expedição José Bento foi morto pelos bugres. Sua morte deve ser sinceramente sentida. José Bento era um homem muito valente e o melhor dos nossos caçadores de bugres”.

O mais famoso dos bugreiros foi Martinho Marcellino de Jesus, que caçava em Lages. Uma vez chamado para fazer a contagem das mortes, justificou. “Por favor, senhores, deve haver algum engano, eu não matei cem índios. Em defesa dos colonos e de suas propriedades eu matei mais de mil índios”.

É que ser bugreiro era lucrativo. Para receber o pagamento da Companhia de Colonização os caçadores cortavam as duas orelhas dos Xokleng e as entregavam aos agentes, assim se comprovava o cumprimento do serviço. O comércio durou um século. Em entrevista ao padre Leonir Dall'Alba, na década de 70, o bugreiro Ireno Pinheiro contou como trabalhava.

"O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro, disparava-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão. O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortava-se as orelhas, cada par tinha um preço. Às vezes para mostrar a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Senão algum sobrevivente fazia vingança. Quando foram acabando o governo deixou de pagar a gente. Getúlio Vargas já era governo quando fiz a última batida".

No caso da Itaty são tão brasileiros que os maiores de 27 anos foram registrados com nomes portugueses, já que antes da Constituição de 1988 não se aceitavam nomes indígenas. Kerexu foi transformada em Eunice Antunes pelo cartório de Limeira, no Oeste. O MPF aponta ainda outro problema. O dinheiro pago para Edward deveria ter sido utilizado como compensação ambiental em Itajaí, mas foi gasto com o laudo. Por essa manobra a procuradora da República Analúcia Hartmann irá mover uma ação contra a Fatma.

Waltrick Rates disse que o laudo foi solicitado para defender os interesses do Estado, já que as terras estão dentro da Serra do Tabuleiro. Ele também defende que a indicação de onde deve ser utilizado o dinheiro cabe ao órgão ambiental para manejo das unidades de proteção.

Em Santa Catarina, há 10 unidades de conservação – Serra do Tabuleiro, Parque Estadual das Araucárias, Fritz Plaumann, Rio Canoas, Acaraí, Rio Vermelho, Serra Furada, Canela Preta, Agual e Sassafrás. Somadas, as terras têm extensão equivalente a Florianópolis. A Fatma designa 17 servidores para protegê-las. Na Serra do Tabuleiro, há 110 construções ilegais, inclusive, casas de veraneio. O órgão ambiental não as questiona na Justiça.

Por outro lado, a PGE pede a anulação da demarcação das terras indígenas com base no marco temporal. O Estado pede provas da existência da Itaty no dia 5 de outubro de 88.

A busca da PGE, no entanto, é facilmente encontrada nos livros de História. Silvio Coelho Santos, um dos fundadores do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), escreve sobre a presença Guarani no litoral catarinense. Na região conhecida como Massiambu há dezenas de sítios pré-históricos. O padre Elias Della Giustina visitou o Morro dos Cavalos e tirou uma série de fotografias dos indígenas e ainda assinou a data atrás delas, 1988. O documento foi utilizado nos trâmites que reconhecem a legalidade do território.

Aliás, até o próprio nome do município onde está situado o Morro dos Cavalos tem origem tupy. E, não por coincidência, o time de futebol mais tradicional se chama Guarani de Palhoça.

As difamações replicadas por Luz, entretanto, não são novidade. Elas são repetidas há anos por três porta-vozes, mas apenas no ano passado ganharam repercussão. O primeiro é o Guarani Milton Moreira, expulso de três aldeias de Santa Catarina, inclusive do Morro dos Cavalos, terra que ele tentou vender por 10.000 cruzados (moeda da época) em 1985 de maneira ilegal, sem a posse das escrituras. Recebeu dinheiro, mas a terra pertence à União atualmente. Na época da venda feita por Moreira, a tribo havia solicitado na Justiça a posse da área. Moreira fez o negócio à revelia do grupo, e por isso foi expulso.

O comprador das terras, Walter Alberto Sá Bensousan, é outro que propaga a versão do questionado antropólogo. E a terceira, a advogada Suzana Alano, representante da associação de moradores da localidade vizinha à Aldeia Itaty. Em uma das suas campanhas contra os indígenas, ela foi à Assembleia Legislativa de Santa Catarina chamar a atenção dos deputados sobre o caos que os índios trariam caso a homologação fosse efetivada.

Suzana fez as contas e concluiu que 100.000 indígenas, o equivalente à população total Guarani de três países da América do Sul, viriam do Paraguai para a região do Morro dos Cavalos em caso de demarcação. Na realidade, 200 pessoas moram ali, segundo a Funai. Em audiência com a procuradora Hartmann, Suzana alegou que os Guarani vieram indiscutivelmente do Paraguai, pois consomem erva mate, denominada cientificamente como “paraguariensis”. Os três são testemunhas da CPI.

Nota

Versão anterior desta reportagem informou incorretamente que o antropólogo Edward Luz, contratado pela Fatma, afirmou em CPI a seguinte frase: “Vamos banhar a semente em sangue se for preciso. Se o Governo proíbe pregar o evangelho, está proibindo a liberdade da adoração, proíbe o autor do evangelho, o senhor Jesus. E nós partimos para o confronto”. O trecho não consta na ata do depoimento, realizado pela CPI da Funai e Incra em 8 de dezembro de 2015. Além disso, parte da fala aparece em entrevista que seu pai, que também se chama Edward Luz, concedeu à revista Rolling Stone para uma reportagem que foi publicada em dezembro de 2011.

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