Feira do Livro de Guadalajara, o cupido que quer flechar o Brasil
A maior feira do livro da América Latina aposta na integração entre brasileiros e hispânicos Nesta 29ª edição, o evento contou com maior presença brasileira e delegação do MinC
A Feira Internacional do Livro de Guadalajara, a segunda maior feira literária do mundo e a primeira dos países hispânicos, tem uma missão que soa (ou deveria soar) como música aos ouvidos brasileiros: que o Brasil seja incluído no contexto quando se fala de América Latina. Quem considera essa tarefa uma obviedade não anda muito a par do mundo dos livros. E nem da mais prosaica conversa de bar, em que é preciso dizer – a qualquer que seja o interlocutor, quando surge um papo sobre a região – que o Brasil é, sim, América Latina. Desde que o país foi o homenageado da FIL, em 2001, esse tem sido o discurso que se escuta sempre que uma voz em portunhol ecoa em Guadalajara. Não foi diferente na 29ª edição da feira (28 de novembro e 6 de dezembro), que teve o Reino Unido como homenageado especial e de cuja imensa programação fazia parte, inclusive, o lançamento de um minisatélite para o espaço.
Quem resume bem esse desquite literário (que em realidade ultrapassa as fronteiras latino-americanas) é a célebre escritora Nélida Piñón, brasileira que se radicou na Espanha, centro do mundo literário em castelhano, e talvez também por isso figure no topo da lista dos escritores nacionais mais conhecidos no exterior: “A literatura brasileira recentemente começou a ser lida no mundo, e sobre ela pesa o estigma do exotismo. Além disso, os escritores brasileiros nunca praticaram o exílio voluntário, razão pela qual não estiveram presentes no cenário internacional”, afirma a carioca. Mas o conto não termina por aí.
A frase de Nélida está na abertura do catálogo do programa que a FIL Guadajalara mantém há quatro anos especialmente para destacar a literatura brasileira, o Destinação Brasil. Sua idealizadora é Laura Niembro, diretora de conteúdos da feira e apaixonada pelo Brasil, quem define o país como “o irmão ausente na América Latina” e faz coro com a escritora – em tom, felizmente, mais otimista. Aos visitantes do evento, um dos raros a combinar atividades para profissionais do meio editorial com a presença do público, Laura lança um convite: “A todos os leitores ávidos por descobrir novas histórias, para os que cada ano esperam que a FIL os surpreenda, para o público profissional que anda à caça de oportunidades de negócio, o destino é o Brasil”. Bom para a feira, que atrai para si o potencial do mercado editorial brasileiro, e bom para o Brasil, que desfruta de um espaço ainda não explorado para angariar mais leitores para si.
Para materializar sua aposta canarinha, a diretora somou esforços com a Fundação Biblioteca Nacional e a Câmara Brasileira do Livro para levar a Guadalajara este ano 12 autores de variados estilos, que se somaram a lista de 44 brasileiros que já fizeram parte de outras três edições do Destinação. O critério de escolha, ela define como “literatura com ‘L' maiúsculo, que seja próxima do leitor e possa enamorá-lo”. Assim estiveram lá, participando de mesas de debate na feira e até de apresentações externas em escolas da região, o cronista Antonio Prata, as romancistas Simone Campos e Cláudia Lage, e escritores como Raphael Montes e Paula Pimenta, cujas obras têm grande conexão com o público juvenil, entre outros.
Para Antonio Prata, um dos autores nacionais mais aplaudidos desta vez em Guadalajara, a tão desejada aproximação entre o Brasil e a América hispânica dá passos largos na FIL: “Estar aqui é o começo dessa mudança. Somos muito parecidos, mas vamos a Paris antes de visitar a Cidade do México. Estive lá agora e só podia pensar que uma cidade assim, tão parecida a São Paulo, é o apogeu da latinidade. Por que não nos conhecemos melhor? Temos que nos traduzir e superar os obstáculos”. Sem rodeios para arriscar o espanhol, assim como Prata, Simone Campos não só espera que sua obra e a de outros colegas brasileiros cheguem às mãos de leitores hispânicos, como investe na mão contrária: “Estar aqui é para mim uma oportunidade de circular pela feira à procura de livros para recomendar a editoras no Brasil”.
Ninguém dá as costas para ninguém
Nem sempre foi assim, mas já é possível dizer que, entre Brasil e o lado hispânico da América Latina, ninguém mais quer dar as costas para ninguém. Menos ainda ao nível dos negócios.
Os brasileiros têm descoberto a feira mexicana – que só perde em importância estratégica para a Feira Internacional do Livro de Frankfurt – a cada ano. Em 2015, o esforço da Câmera Brasileira do Livro de marcar presença em Guadalajara com suas editoras agremiadas e ações do Brazilian Publishers – projeto de internacionalização da literatura brasileira mantido pela CBL em parceria com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) – ganhou um boost do Ministério de Cultura. Pela primeira vez, o MinC lançou um edital para levar ao evento uma delegação nacional que contemplasse vários profissionais do livro e os diferentes estados brasileiros. Foram selecionados 20 projetos, cujos responsáveis tiveram suas viagens custeadas para realizar negócios e estreitar os laços com o maior palco editorial latino-americano.
“A FIL é especial porque comporta várias atividades para profissionais, com oportunidades de negócios, e também eventos e conteúdos voltados ao público. Mesmo a delegação brasileira sendo tão variada, acredito que todos encontraram oportunidades aqui”, opinou Marianna Teixeira Soares, agente literária do Rio de Janeiro que esteve em Guadalajara com o MinC. Ao seu lado, estavam profissionais veteranos, como Marcelo Duvidovich da Sur Livros, argentino que distribui títulos em espanhol no Brasil há 20 anos, e novas vozes do mercado, como Samira Almeida da StoryMax, que faz livros digitais interativos. Para Samira, a viagem ao México foi "uma oportunidade de se aproximar não só de hispano-americanos, mas dos próprios colegas brasileiros”. Já Marcelo celebra que exista finalmente um apoio do Estado no setor. “Conheço editores, distribuidores e livrarias em toda a América Latina, mas sem apoio estatal é quase impossível fazer negócios com o exterior”, diz.
À presença do MinC, da CBL e do BP, soma-se a importância de veículos essenciais de divulgação da produção literária brasileira internacionalmente, como a revista Machado de Assis (cujo sétimo número, com trechos de livros traduzidos ao espanhol e ao inglês, foi lançado nesta FIL), editada em parceria com o Itaú Cultural, e o programa de apoio à tradução de autores do Brasil no exterior – divulgados em Guadalajara a cada edição da feira. Ambas são iniciativas da Biblioteca Nacional, que lutam para não ser descontinuadas e sobreviver às recessões e trocas de governo.
Com recursos da BN e da própria editora, livros como os de Luiz Ruffato, colunista do EL PAÍS, Joca Reiners Terron e Eric Nepomuceno foram traduzidos ao espanhol para compor o catálogo de uma das casas editoriais mais elogiadas do México, a Almadía. Outra obra brasileira traduzida este ano foi a fotobiografia de Clarice Lispector de Nádia Battella Gotlib, editada no México pela Conaculta. “Esse estímulo do Governo brasileiro vai de encontro à enorme curiosidade que nós, hispano-americanos, temos pelo Brasil. E é essencial para materializá-la”, opina Ricardo Alonso, da editora colombiana Diente de León, representada na feira com a tradução de Faca (intitulado Cuchillo em espanhol), livro de contos de Ronaldo Correia de Brito.
Fica claro que “o irmão ausente” deve regressar a casa e começar, de fato, a dialogar. Na região, o Brasil é atualmente o país que mais lança livros – mais de 78.000 unidades ao ano, segundo dados do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (Cerlalc). Ao mesmo tempo, tem apenas uma livraria a cada 52.000 habitantes. Os vazios – ou, em melhores palavras, os potenciais – são enormes, e os brasileiros parecem ser aqueles que todos querem flechar, a despeito de crises políticas e econômicas. O cupido, sem dúvida, é a feira do livro de Guadalajara.
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