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Coluna
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Estranhas coincidências

Valeria a pena verificar uma singularidade: como Brasília, de 2,5 milhões de habitantes, concentra um altíssimo número de acertadores nas loterias federais?

Sou um cético. Toda informação que me chega pela internet, poço sem fundo das falsas notícias, confronto com pelo menos duas fontes reconhecidamente idôneas antes de sequer começar a refletir sobre ela. Mas algo me tem intrigado nos últimos dias. Assim como milhões de outros brasileiros, depositei o sonho de resolver de vez as minhas inquietações financeiras na expectativa de ganhar o prêmio de 204 milhões de reais oferecido pela Mega Sena. Joguei quatro cartões de 3,50 reais cada, total de 14 reais, e aguardei com ansiedade o sorteio.

Quando a Caixa Econômica Federal anunciou que o prêmio havia saído para um apostador de Brasília, eu, como todos os que não ganharam, esconjurei frustrado aquela cidade, que representa em nosso imaginário todos os males que assolam o país: a corrupção, a arrogância, a ganância. Desconfiado, pensei, pensamos, que ali havia claros indícios de fraude. Mas, tratava-se apenas de revolta e indignação. Enterrada a fantasia, fui dormir cedo para, descansado, voltar no dia seguinte à labuta cotidiana.

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Mas, na medida em que novas revelações a respeito do resultado daquele sorteio foram vindo à tona, o que poderia ser interpretado como paranoia provocada por despeito foi se alicerçando em desânimo suspeitoso. A pessoa vencedora ganhou o prêmio multimilionário com uma aposta simples de R$ 3,50 – uma chance em 50 milhões, segundo a própria promotora da Mega Sena, e resgatou o dinheiro em tempo recorde, logo após a abertura da rede bancária. A Wands Loterias, casa lotérica onde ela jogou usando a fila preferencial, fica no Lago Sul, uma das mais nobres áreas do Distrito Federal, e pertence a Nasser Youssef Nasr.

E quem é Nasser Youssef Nasr? Há um ex-deputado estadual no Espírito Santo com esse nome. Em 2012, ele foi condenado a oito anos de suspensão dos direitos políticos e a multa de 137.000 reais por improbidade administrativa. Membro da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa, ele participava, segundo conclusão do juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual, Ademar João Bermond, de um esquema de desvio de recursos públicos por meio da simulação de pagamentos a títulos de subvenção a entidades como associações de moradores, centros comunitários, escolas, federações, igrejas, sindicatos, fundos e obras de assistência social. Mas, pasmem, Nasser Youssef Nasr, de Brasília, não é Nasser Youssef Nasr, do Espírito Santo: trata-se apenas de uma irônica coincidência, um caso absurdo de homonímia...

Mesmo assim, a questão é que, escaldados, justificadamente sentamos em cima da nossa teimosa descrença. Ainda lateja a história do deputado, já falecido, João Alves (BA), que durante o governo Collor lavava dinheiro de propinas recebidas para incluir obras no Orçamento da União jogando na loteria – ele, que nasceu em uma família paupérrima, gabava-se de sua riqueza conquistada com 221 premiações. E, mais recente, o empresário José Carlos Bumlai, amigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, envolvido na Operação Lava-Jato, afirma que ganhou R$ 2 milhões no sorteio de um título de capitalização do Bradesco, que lhe custou 1.000 reais –a maioria absoluta dos compradores desse tipo de papel resgata o dinheiro após 24 meses, corrigidos pela TR, sem juros. Sorte que não acomete o cidadão comum...

Há anos o senador Álvaro Dias (PSDB-PR) vem denunciando a existência de manipulação de resultados, fraudes e lavagem de dinheiro envolvendo as modalidades de loteria promovidas pela Caixa Econômica Federal. Há inclusive, segundo ele, um inquérito policial instaurado na Segunda Vara Especializada da Justiça Federal. Como mera sugestão, creio que valeria a pena verificar uma singularidade: Brasília, cidade de 2,5 milhões de habitantes, concentra um altíssimo número de acertadores nas loterias federais. Só para tomar um exemplo concreto, a Mega Sena da Virada, criada em 2009, já teve três ganhadores de Brasília em suas seis edições: em 2009, 2011 e 2014 – ou seja, em 50% dos sorteios, um número estatisticamente espantoso. Pode ser mera coincidência, claro. Mas, como indaga o professor Braga, do longa-metragem de animação “Os incríveis”: “Coincidência? Acho que não!”

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