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Coluna
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Rumo ao obscurantismo

Os parlamentares alegam agir em defesa de valores tradicionais da família brasileira. Resta saber quem protegerá a sociedade da 'fúria santa' dos nossos legisladores

Milhares de mulheres foram às ruas contra o PL 5069 no Rio (foto) e em São Paulo.
Milhares de mulheres foram às ruas contra o PL 5069 no Rio (foto) e em São Paulo.Vladimir Plantonow (Agência Brasil)

A impressão é de um ocaso que prenuncia as trevas da noite. A sociedade brasileira, machista e misógina, vem dando demonstrações claras de apego apaixonado ao obscurantismo. O presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, que diz falar em nome de Deus, não está sozinho em sua cruzada cinicamente moralista: ele conta com apoio, explícito ou velado, da maioria da população, que, ancorada na ignorância, no egoísmo ou na indiferença, manifesta no dia a dia sua hipocrisia e perversidade. A aprovação, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, de um Projeto de Lei dificultando ainda mais os procedimentos de aborto em caso de estupro –uma das raras situações na qual a interrupção da gravidez é permitida– contou com votos da situação e da oposição, todos irmanados em escusos interesses comuns.

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De acordo com dados do Center for Reproductive Rights (Centro de Direitos Reprodutivos), o Brasil já se encontra entre os países com legislação mais rígida do mundo em relação ao aborto. No entanto, o grupo liderado por Cunha –composto por evangélicos e católicos, políticos de esquerda e de direita– acha que somos liberais demais e tenta impor que a vítima de estupro só possa receber atendimento hospitalar após prestar queixa à polícia e realizar um exame de corpo de delito. Além disso, passa a considerar violência sexual apenas os casos que resultam em danos físicos e psicológicos– e não como é hoje, qualquer forma de atividade sexual não consentida. Por fim, remove do atendimento de saúde os tratamentos preventivos, como a pílula do dia seguinte e o coquetel anti-HIV.

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estima que cerca de nove milhões de mulheres, entre 18 e 49 anos, fizeram pelo menos um aborto na vida – deste total, mais de um milhão provocados. A maior parte da interrupção voluntária da gravidez ocorre por desamparo da família e do Estado. O resultado é sempre traumático para a mulher, desde danos psicológicos irreversíveis até mesmo à morte, principalmente de mulheres pobres que, sem recursos financeiros, lançam mão de arriscadas soluções caseiras. Parte importante do total desses abortos está relacionado a casos de estupro, que segundo pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) ocorrem, em sua grande maioria (67% do total), dentro de casa, e atingem em particular crianças e adolescentes (67%). No entanto, apenas 10% são notificados, e os agressores permanecem à solta.

Uma questão da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), usando uma proposição de Simone de Beauvoir, que evidencia a distinção entre gêneros masculino e feminino como uma construção cultural, causou reações histéricas em lideranças políticas como os deputados Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Marcos Feliciano (PSC-SP), membros eminentes da Frente Parlamentar Evangélica, que conta com cerca de 90 afiliados. Bolsonaro e Feliciano, entretanto, apenas deram rosto à enxurrada de manifestações machistas, intensamente agressivas, grande parte anônima, que inundou as redes sociais do país. Gente de todas as idades e condição social acusaram os formuladores do teste de marxistas e destruidores dos pilares da família brasileira...

O assédio sexual, comemorado quase como um atributo intrínseco ao macho brasileiro, é o caminho mais curto para o estupro

Dados coligidos pela Central de Atendimento à Mulher, órgão ligado à Presidência da República, mostram que, em 2014, foram catalogadas 53 mil denúncias de violência contra a mulher: 51% agressões físicas, 31%, psicológicas, 10% morais, 2% patrimoniais, 3% sexuais, 2% por cárcere privado e 0,26% por tráfico – deste total, 80% foram ocorrências verificadas dentro de casa. No ranking mundial, o Brasil ocupa o 7º lugar entre os países com maior número de feminicídios – 4,4 por 100 mil habitantes. De cada dez assassinatos de mulheres, sete são cometidos pelo próprio marido ou companheiro.

Valentina Schultz, 12 anos, participante do programa Master Chef Junior da Rede Bandeirantes de Televisão, recebeu uma quantidade tão grande de mensagens com conteúdo sexual, via redes sociais, que virou notícia. Em 2013, pesquisa do Instituto Avon mostrou: 56% dos homens entrevistados confessavam ter agredido uma mulher pelo menos uma vez –xingando-a, empurrando-a, dando tapas ou socos, impedindo-a de sair de casa ou obrigando-a a fazer sexo. Mesmo admitindo que os outros 44% tenham sido honestos ao responder o questionário, devemos nos perguntar qual seria o percentual alcançado caso a pergunta fosse se eles haviam, em algum momento da vida, assediado sexualmente uma mulher. É provável que esse número seria bem maior. O assédio sexual, comemorado quase como um atributo intrínseco ao macho brasileiro, é o caminho mais curto para o estupro. O caso de Valentina Schultz mostra o grau de perversidade presente no imaginário nacional. O que Eduardo Cunha e seus asseclas propõem é a condenação da vítima e a ampliação da impunidade dos agressores. Os parlamentares alegam agir em defesa de valores tradicionais da família brasileira. Resta saber quem protegerá a sociedade da “fúria santa” dos nossos legisladores.

Luiz Ruffato é escritor e jornalista.

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