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Coluna
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Os profetas do ressentimento

De tudo que inventamos para nos impor uns aos outros, sem dúvida o mais bestial de todos os recursos é o terrorismo

Torre Eiffel com as cores da bandeira da França, em homenagem as vítimas de Paris.
Torre Eiffel com as cores da bandeira da França, em homenagem as vítimas de Paris.Benoit Tessier (REUTERS)

Podemos resumir a história da Humanidade à história dos confrontos entre os homens. Por mais que tenhamos avançado, desde os tempos em que deixamos as cavernas até agora, permanecem em nós resquícios de barbárie que nos colocam aquém dos animais selvagens, já que eles abatem as presas visando apenas à sobrevivência do grupo. Nós matamos para nos alimentar, para acumular riquezas, para nos divertir, para saciar nossa raiva –e, para tanto, criamos mecanismos de justificação de nossos atos, alegações sociais, econômicas, políticas, territoriais, morais, étnicas, culturais, religiosas. De tudo que inventamos para nos impor uns aos outros, no entanto, sem dúvida o mais bestial de todos os recursos é o terrorismo. Nada, nenhum argumento legitima a ação desse inimigo sem rosto, insensível, covarde, adversário da vida, aliado da morte.

O grupo autointitulado Estado Islâmico, responsável pelo assassinato de 129 pessoas e por deixar outros 352 feridos nos ataques em Paris, invoca o Alcorão para praticar atrocidades contra alvos civis e patrimônios artísticos milenares, mas evidentemente sua pregação não se baseia em genuíno discurso religioso, mas sim na divulgação de sentenças esvaziadas de sentido lógico. Porque as religiões, por mais equivocadas e exclusivistas que sejam, em sua essência não advogam o ódio – quem assim o faz são os profetas do ressentimento, pessoas mentalmente doentes, com incrível capacidade de sedução, convencimento e liderança, que cultuam a ideologia do Mal. Suas carismáticas palavras proliferam no terreno fértil da ignorância, do fracasso, da humilhação, do desenraizamento.

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Embora listada entre os sete pecados capitais do cristianismo, a cobiça é o que move as relações do Ocidente com os povos africanos e asiáticos. Procurando acumular riquezas, propagam a miséria. A falta de horizontes em seus lugares de origem empurrou e empurra milhões de pessoas, principalmente entre aquelas que professam a fé muçulmana, em direção às periferias das cidades da Europa e dos Estados Unidos. Quando a economia do mundo vai bem, as tensões se neutralizam, mas basta uma pequena diminuição no consumo, pilar de sustentação do capitalismo, para que venham à tona as diferenças. Segregadas, essas comunidades são as primeiras a sofrer as consequências das crises: calcula-se que o índice de desemprego entre os muçulmanos na Europa seja até três vezes maior que a média.

Acuados pela islamofobia, pela baixa escolaridade, pela falta de perspectivas, os jovens muçulmanos, que representam um percentual bastante expressivo entre a população europeia, não se reconhecendo no lugar onde se encontram, tornam-se presas fáceis para mensagens salvacionistas. Quando perdemos o entusiasmo pela vida –e o entusiasmo pela vida está diretamente ligado à busca pela felicidade– ficamos à mercê de discursos os mais estapafúrdios, principalmente os que prometem um mundo melhor numa dimensão à qual não temos acesso – e, portanto, de difícil contestação. Saímos do terreno da racionalidade para o território da pura especulação, solo onde se alicerçam as religiões e todas as superstições –e por onde caminham com desenvoltura os profetas do ressentimento.

À dissolução da individualidade no mundo dos pequenos delitos, os sectários oferecem a esperança de heroísmo, por meio do martírio. Idealizam um passado glorioso para projetar um quimérico futuro radiante, fundamentado em um mundo fechado de valores tribais e primitivos –machista, xenófobo, homofóbico–, no qual, iguais entre iguais, se aninham em pretensa zona de segurança. Não desejam o diálogo, não preconizam a comunhão, mas incitam o ódio, a violência, a destruição dos que denominam “pagãos” reunidos numa sociedade “idólatra e perversa”, conforme o texto da mensagem em que Estado Islâmico reivindica a autoria dos atentados em Paris.

Há uma diferença sutil, mas primordial, entre a execrável ação do grupo terrorista Al Qaeda contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, em 2001, que deixou quase 3.000 mortos, e essa, agora, dos jihadistas. No primeiro caso, os seguidores de Bin Laden atacaram um símbolo do capitalismo norte-americano, no qual exorcizavam o “Grande Satã”, representado pela controversa imagem imperialista que os Estados Unidos passaram a auferir ao redor do planeta após a Segunda Guerra Mundial. Já o Estado Islâmico, ao atacar a França, amplia o alvo, investindo contra valores que embasam a civilização ocidental como um todo, aquilo que alcançamos a duras penas e que representam enormes avanços na história da Humanidade. Conquistas que, consignadas na Declaração do Homem e do Cidadão, proclamada pela Revolução Francesa, em 1789, e resumidas no dístico “liberdade, igualdade, fraternidade”, desdobraram-se na garantia dos direitos das mulheres, dos trabalhadores, dos homossexuais, na criminalização do racismo e da xenofobia, no respeito à orientação religiosa, no direito ao acesso à educação, à saúde e ao lazer.

O que está em jogo, portanto, não é o conflito entre cristãos e muçulmanos, como quer dar a entender os propagandistas do Estado Islâmico –até porque, tanto cristãos quanto muçulmanos não formam blocos únicos de pensamento e ideologia–, mas sim entre os que fiam-se nos valores democráticos e os que, cegos pelo rancor, desfraldam a bandeira da intolerância e desejam apenas e obsessivamente a aniquilação da sociedade ocidental. Uma sociedade paradoxal que convive com enormes problemas, mas que até mesmo à guerra impõe regras e procedimentos legais, conforme as normas estabelecidas nas chamadas Convenções de Genebra, que, iniciadas em 1864, mantêm-se em constante aprimoramento. Regras e procedimentos que o Estado Islâmico, e os terroristas em geral, desprezam.

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