Peronismo tenta superar divisões para manter o poder na Argentina

O conflito entre a ala ligada a Cristina Kirchner e o grupo de Scioli, candidato indicado pela própria presidenta, prejudica as perspectivas eleitorais do governismo

Cristina Kirchner em Buenos Aires na quinta.
Cristina Kirchner em Buenos Aires na quinta.M. BRINDICCI (REUTERS)

A guerra interna que vinha sendo gestada havia meses no peronismo argentino explodiu depois dos maus resultados dessa tendência política no primeiro turno da eleição presidencial, no domingo passado, que colocaram o oposicionista Mauricio Macri como favorito para a rodada definitiva de votação. Os kirchneristas, mais à esquerda, e os sciolistas, mais ao centro, estão em guerra declarada, trocando recriminações pelo fiasco eleitoral. O candidato Daniel Scioli tenta acalmar os ânimos para evitar uma derrota no próximo dia 22, e para isso se viu obrigado a desmentir que haja pressões internas para que desista.

O peronismo, segundo a análise mais difundida entre seus próprios membros, é um amálgama de correntes de esquerda, centro e direita, unidas por uma cola muito forte: o poder. Mas, quando o perdem, passam a exibir rudemente suas diferenças. Não há nada mais duro na política argentina do que uma guerra entre dois peronistas, como provou a recente batalha pelo controle da província de Buenos Aires, a mais importante do país, desde domingo nas mãos da oposição pró-Macri. Esse espírito autodestrutivo, que jamais aparece quando o peronismo está no poder, sai a campo agora com uma virulência inusitada devido à possibilidade real de perda do Governo, após 14 anos ininterruptos, sendo 12 deles com o casal Néstor e Cristina Kirchner à frente.

Nessa guerra há rumores de todo tipo, e o último dizia que Cristina obrigaria Scioli (da Frente para a Vitória) a desistir da candidatura para permitir que Macri, apesar de vitorioso, fique debilitado, pois seria eleito com apenas 34% dos votos no primeiro turno. A partir daí, o kirchnerismo buscaria construir uma oposição muito dura para derrubar Macri, da aliança Mudemos, num prazo de dois anos, a exemplo do que aconteceu com Fernando De la Rúa, da União Cívica Radical, que em 2001 precisou fugir de helicóptero da Casa Rosada. Mas Scioli é incansável. “Nem vale a pena responder a essa pergunta, porque minha vida é um testemunho de luta e tenacidade”, afirmou.

Os sciolistas pressionam o candidato a se afastar de Cristina Kirchner

Ricardo Foster, referência do kirchnerismo e secretário governamental de Coordenação Estratégica para o Pensamento Nacional, admite a confusão dos últimos dias, mas garante que os peronistas agora irão cerrar fileiras. “Isso de que Scioli vai desistir é um rumor absurdo. Perdemos a província de Buenos Aires e isso gerou muita inquietação. Mas agora temos claro que as opções são férreas. O país está em jogo. Macri é o neoliberalismo, um enorme retrocesso. Pode ser que alguns tenham dúvidas quanto a Scioli, mas não sobre o que Macri representa. Isso é o que vamos sair a campo para recordar: que Scioli é o nosso candidato, disso não há dúvidas.”

Os sciolistas pressionam o candidato para que se distancie de Cristina. “Afastar-se não faz sentido para ele, pareceria um ato insincero. O que é preciso é incluir todos – kirchneristas, peronistas em geral e a esquerda, que representa 7% a 8% que nunca votariam em Macri”, diz Forster.

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Ele e outros trabalham para acalmar a situação. Mas nem sempre conseguem. O espetáculo da quarta-feira foi quase teatral. De forma escancarada, kirchneristas e sciolistas culparam-se mutuamente pelos maus resultados do primeiro turno – uma vitória de Pirro, com apenas dois pontos percentuais sobre Macri. Os kirchneristas admitem que é doloroso para eles precisar votar no candidato indicado pela presidenta. Hebe de Bonafini, líder das Mães da Plaza de Mayo, foi direta: “Acho Scioli muito falso. Deixou a província [de Buenos Aires] na merda, os hospitais dão vergonha, as escolas dão vergonha. Mas é preciso sair de qualquer maneira para votar, a fim de que Macri não ganhe”. Sobre a guerra interna para apontar culpados pela derrota em Buenos Aires, Bonafini disse que “há traidores aí dentro”. Essa província pode se tornar o refúgio dos kirchneristas, que criticam Scioli por não ter feito campanha para o seu candidato a governador, Aníbal Fernández.

O grupo de intelectuais kirchneristas Carta Aberta também atacou o candidato. Horacio González, diretor da Biblioteca Nacional, disse que ele e seus colegas vão votar em Scioli, mas “dilacerados”, porque ele está muito à direita das suas posições. “Cristina impôs a dedo um candidato do qual nem ela jamais gostou”, disparou o escritor Mempo Giardinelli.

O sciolismo respondeu a isso com mais dureza ainda. Para seus seguidores, o problema da campanha é que a presidenta apareceu demais. “Ninguém se animou a dizer a Cristina que a cada discurso em rede nacional nós perdemos 700.000 votos”, argumentou o empresário Alberto Samid, muito próximo do candidato. Gustavo Marangoni, homem chave do sciolismo, qualificou de “dinossauros” os intelectuais que criticam o presidenciável. “Todos os que desejam Scioli como próximo presidente precisam se somar e deixar de distrair com bobagens”, concluiu.

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