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Quando os refugiados eram os espanhóis fugindo da Guerra Civil

Muitas pessoas estão comparando nas redes sociais a atual situação dos refugiados sírios com a vivida pelos espanhóis durante a Guerra Civil

Jaime Rubio Hancock
Garoto sírio chega ao porto Piero, na Grécia.
Garoto sírio chega ao porto Piero, na Grécia.ORESTIS PANAGIOTOU (EFE)

Milhares de refugiados estão chegando às costas europeias: 50.000 deles, só em julho. Uma grande parte vem da Síria: fogem de uma guerra que começou em 2011. Muitas pessoas estão comparando, nas redes sociais, a situação desses refugiados com as vividas pelos espanhóis durante a Guerra Civil.

Como registrou Alicia Alted no livro La Voz de los Vencidos: no exílio republicano de 1939, cerca de 465.000 espanhóis fugiram do conflito cruzando a fronteira com a França. Embora muitos tenham conseguido voltar na década de 40, o exílio permanente causado pela Guerra Civil é estimado em cerca de 220.000 pessoas.

Esta é uma das fotos compartilhadas nas redes: 106 imigrantes ilegais estão chegando à Venezuela. E são espanhóis. A fotografia foi capa do jornal venezuelano Agência Comercial e em 2001 foi usada em mil cartazes publicados pelo governo das Ilhas Canárias com a legenda “Nós também fomos estrangeiros”.

Tomás Bárbulo explicou ao El PAÍS a história dessa imagem, que começou em 16 de abril de 1949: “Uma centena de pessoas passaram escondidas pelo cais de Las Palmas e embarcaram em vários barcos à vela pequenos. A maioria eram camponeses da Gran Canaria que ganhavam 20 pesetas para trabalhar de sol a sol e que tiveram de vender suas cabras para pagar as 4.000 pesetas da passagem, uma pequena fortuna na época”.

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Tinham passado vários dias escondidos em casas particulares. “Juan Azcona, um dos organizadores da viagem, declarou que tinha alojado mais de 20 em sua casa. Se tivessem aplicado a atual Lei de Estrangeiros teria passado uma boa temporada preso por tráfico de pessoas”.

Os passageiros nos barcos subiram até La Elvira ao sul de Fuerteventura, onde foram interceptados pela Guarda Civil, que ordenou que parassem “em nome da Espanha”. “Que sua mãe se entregue!”, respondeu uma voz na escuridão. Uma rajada de vento os ajudou a escapar.

Eles passaram a maior parte do tempo da viagem no porão. “Faziam suas necessidades atrás de tábuas. Vomitavam uns sobre os outros e logo estavam cheios de piolhos. O ácido dos vômitos e o salitre do mar desgastaram suas roupas, que se transformaram em trapos”. Comiam “batatas podres, grão de bico com insetos conhecidos como gorgulhos e gofio picado, uma comida típica das Canárias feita de farinha torrada. A água era racionada”. Na madrugada de 22 de maio, depois de 36 dias de viagem, chegaram ao porto de Carúpano, na Venezuela. Foram registrados como imigrantes voluntários e levados para um centro em Caracas.

Uma das imagens mais famosas dos refugiados espanhóis em 1939.
Uma das imagens mais famosas dos refugiados espanhóis em 1939.

Como recorda Bárbulo em seu artigo: “Quando aquelas 106 pessoas desembarcaram na América Latina, a Espanha estava mergulhada na miséria e esmagada pela repressão franquista, enquanto a Venezuela era um país emergente. Embora a diferença entre os dois Estados fosse menor do que a que existe hoje, por exemplo, entre a Nigéria e a Espanha, os espanhóis estavam experimentando o mesmo efeito saída que empurra os imigrantes subsaarianos que chegam às ilhas”.

A foto do La Elvira não é a única que foi resgatada para lembrar que durante uma época fomos nós que tivemos de fugir. O jornalista Toño Fraguas lembrava essa fotografia de Stanbrook, conectando com um artigo do El Mundo que contava a viagem.

Como conta Paul Preston no livro El Holocausto Español, “dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças republicanas fugiram de Madri em 28 de março de 1939, perseguidos pelos falangistas” e na direção de Valência e Alicante, “onde tinham feito a promessa de que haveria barcos para levá-los ao exílio. Na verdade, tal coisa não era possível”.

Os barcos a vapor britânicos Stanbrook, Maritime, Ronwyn e African Trader, juntamente com alguns pesqueiros, foram os últimos a partir, carregando “um total de 5.146 passageiros”. O barco com mais gente era o Stanbrook, que saiu de Alicante com 2.638 refugiados. “O convés estava ocupado até o último canto, assim como os porões, por isso a linha de flutuação estava bem abaixo da água”.

O navio chegou em Orã, na Argélia, onde “as autoridades francesas negaram permissão para desembarcar os passageiros”. Só cederam “quando houve risco de doenças infecciosas e, finalmente, levaram os refugiados para campos de internação”.

Depois que esses barcos partiram, continuaram chegando refugiados republicanos em Valência. “Desesperados, muitos cometeram suicídio, ou pulando na água ou com um tiro”. Os barcos nas proximidades iam embora ou mudavam de rumo, “temendo ser interceptados pelo exército rebelde”. Londres e Paris não quiseram intervir, mas o México “se ofereceu para receber todos os refugiados”. Franco recusou, “afirmando que eram prisioneiros de guerra e deviam sofrer as consequências”.

Não foi a única vez que o Governo mexicano fez uma oferta similar. No dia 1º de julho de 1940, Lázaro Cárdenas, presidente do México, disse que seu país estava “disposto a aceitar todos os refugiados espanhóis que estavam na França naquele momento”, escreve Preston. Também informou ao Governo francês que “até que pudessem ser concluídas as condições de transporte, todos os republicanos espanhóis estavam sob a proteção diplomática do México”.

Essa iniciativa “ajudou milhares de republicanos até dezembro de 1942, quando a ocupação alemã da França de Vichy” levou ao rompimento das relações diplomáticas entre os dois países.

A fuga para o México já tinha começado em 1937, com as 463 crianças que viajaram ao país desde Bordeaux a bordo do Mexique. Apesar de o governo mexicano falar de “órfãos espanhóis”, Alted registra em seu livro que “grande parte dos que foram na expedição tinham pais, com cujo consentimento não se contou em alguns casos”.

O navio chegou a Veracruz em 7 de junho. No dia seguinte foram recebidos pelo presidente Cárdenas na Cidade do México, de onde foram a Morelia. “Os primeiros meses da estadia na escola foram caóticos. A indisciplina reinava por toda parte e em suas saídas pela cidade de Morelia algumas crianças protagonizaram incidentes, como, por exemplo, o apedrejamento de igrejas”. Um menino morreu acidentalmente, eletrocutado.

Em dezembro de 1938 se tentou repatriar os que tinham completado 16 anos que tivessem “obrigações pré-militares e militares a cumprir”, mas “a queda da frente catalã e o desmoronamento do governo republicano” impediram que a repatriação acontecesse.

As crianças permaneceram no México, “com seus laços familiares rompidos, em um país que não conseguiam sentir como seu e, por vezes, com um sentimento de frustração pelas circunstâncias que tinham condicionado suas vidas dessa maneira”, escreve Alted, que registrava em 2002 o depoimento de Leonor Ortega Sánchez, que tinha 6 anos na época: “Eu vim para o México porque me trouxeram, não por vontade própria. Eu não sabia. Ouvia a palavra ‘México’, mas era como se me dissessem ‘Timbuctu’”. Ortega Sánchez dizia sentir-se “totalmente dividida porque ali as pessoas não me aceitavam como mexicana”, mas se decidisse voltar à Espanha, “o mais provável é que já estaria desejando vir embora”.

A atitude do presidente mexicano Cárdenas em relação à República espanhola tinha provocado críticas nos setores mais conservadores do país, que temiam a radicalização da política governamental, e de muitos trabalhadores mexicanos, que não queriam que “os recém-chegados pudessem exercer uma concorrência desleal no mercado de trabalho, pois nesses momentos o país enfrentava um grave problema de desemprego”.

De fato, tentaram criar bases para filtrar os imigrantes e garantir que chegariam com recursos próprios e não se fixariam nas cidades, em especial na capital. Mesmo assim, a seleção realizada “teve pouco a ver com esses critérios” e o país acolheu “um número relativamente elevado de profissionais liberais, políticos e intelectuais, mas também houve camponeses e pessoas de ofícios diversos”, que acabaram se fixando majoritariamente na Cidade do México. Calcula-se que entre 20.000 e 24.000 refugiados chegaram ao país depois da guerra.

Também chegaram refugiados a países como Argentina, Chile, Cuba, União Soviética, Estados Unidos, República Dominicana... Dacordo com o Museu da Imigração, mais de 750.000 espanhóis chegaram ao Brasil entre o fim do século XIX e a década de 1960. Não se sabe exatamente quantos chegaram durante a Guerra Civil Espanhola, mas sabe-se que esse foi um dos maiores picos, juntamente com a Segunda Guerra Mundial. Apesar da chegada em diversos países da América Latina, muitos tiveram de ficar nos campos franceses, onde a situação era difícil. Alted registra o depoimento de José Ramón y Mena, que chegou ao campo de Argelès em fevereiro de 1939: “Não havia nenhum equipamento sanitário, tinham instalado bombas de água a cinquenta metros do mar, na areia, puro salitre, e tudo isso produziu uma hecatombe com uma epidemia de diarreia. As pessoas morriam como moscas. (...) Você topava com professores universitários, como o professor Puigvert, que era um famoso urologista de Barcelona, e topava com um malandro que tinha conhecido no bairro chinês; enfim, ali estávamos todos misturados”.

Alted também aponta que os exilados espanhóis foram um problema econômico e político desde o primeiro momento para a França, que não tinha previsto “nenhum dispositivo para lidar com um êxodo como o que se produziu no início de 1939”. Além disso, “uma parte importante da população francesa se mostrava contrária à admissão desses espanhóis por considerá-los um perigo político e uma cicatriz social”. Por esses motivos, o país se mostrou “especialmente interessado em fomentar a repatriação à Espanha ou a reemigração a terceiros países”.

Muitos retornaram à Espanha ou foram obrigados a retornar, sobretudo mulheres e crianças, com isso no final de 1939 permaneciam na França entre 140.000 e 180.000 refugiados. Os homens com idade entre 20 e 48 anos tiveram de trabalhar para a autoridade militar francesa, ou como mão de obra na indústria bélica ou no combate. Aproximadamente 55.000 foram para as Companhias de Trabalhadores Estrangeiros e 6.000 para os Batalhões de Marcha de Voluntários Estrangeiros ou a Legião, explica Alted, que recorda que muitos deles “foram feitos prisioneiros junto com os franceses, enviados para a Alemanha e internados em stalags ou campos de prisioneiros”.

A eles se juntariam os que “principalmente a partir de 1943, seriam feitos prisioneiros por sua participação na Resistência” e muitos dos que ficaram em campos de internamento na zona ocupada pelos alemães na França. “Em 20 de agosto de 1940, um trem de gado partiu de Angoulême com 927 refugiados espanhóis a bordo”, escreve Preston. Os refugiados acreditavam que estavam sendo levados para a zona não ocupada da França. “A viagem durou três dias e duas noites, que os refugiados passaram em pé, sem comida nem água. Em 24 de agosto chegaram a Mathausen”.

Viajavam no trem 490 homens, 397 deles morreram no campo. “As mulheres e crianças foram enviadas de volta à Espanha, tinham sido embarcados no trem para que os civis franceses não vissem que as famílias estavam sendo separadas”. Mais de 5.000 espanhóis morreram nos campos de concentração nazistas.

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