Controle de qualidade
O Estado de Direito é o elemento mais importante para julgar a qualidade da democracia brasileira. Aos democratas: agora é o momento de cuidar desse controle de qualidade
Milhares de brasileiros saíram às ruas para protestar contra o atual governo da presidente Dilma Rousseff, eleita democraticamente. Alguns carregavam em suas mãos cartazes pregando uma intervenção militar. Centenas de pessoas chegaram a pular gritando "quem não salta é comunista." Essa é exatamente a mesma cena no filme chileno Machuca, mostrando a completa divisão da sociedade chilena antes do golpe militar de Pinochet, em 1973. Lá, os políticos não puderam evitar o colapso da democracia em um país dominado por grupos extremistas.
No século XXI no Brasil, o PT e o governo também parecem longe da realidade democrática. Em um documento oficial, o partido escreve que há "uma campanha de cerco e aniquilamento" contra o PT, em uma tentativa de "criminalizar" a legenda. A discussão baseia-se em extremismos reducionistas. Alguns argumentam que qualquer discussão sobre um possível impeachment é um golpe. Outros dizem que a presidente deveria ser afastado do cargo, simplesmente porque uma grande parte da população não está satisfeita.
Um debate mais frutífero, no entanto, deve centrar-se na questão da qualidade da democracia brasileira. Nas duas últimas décadas, muitos especialistas se dedicam a criar adjetivos para diferentes democracias. De acordo com algumas estimativas, mais de 500 adjetivos foram usados por cientistas políticos para definir democracias. A democracia é um tipo de regime - aqui entendido como o conjunto de instituições e regras que definem a forma de exercer o poder- mas diferentes democracias têm diferentes qualidades. Autores como Larry Diamond reconhecem que a definição da qualidade de democracia varia de um autor para outro. No entanto, algumas características são mais aceitas na literatura.
Na América Latina, os governantes pensam frequentemente, depois de serem eleitos, que eles têm poder absoluto para fazer o que quiserem
O Estado de direito é a base para todos os outros aspectos da qualidade da democracia. Sob o império da lei todos os cidadãos são iguais perante a lei, aplicada de forma justa e de forma consistente para todos por um sistema judicial independente, e as próprias leis são claras, de conhecimento público, universais, estáveis e não têm retroatividade (o que significa que a legislação não pode ser criada para punir alguém que fez algo antes de seu início).
Em segundo lugar, a competição é uma característica importante. Isso significa não só a existência de regras que permitam às partes disputar eleições, mas também questões práticas, como o financiamento. As regras que garantam o acesso ao financiamento e controle das doações a partidos podem evitar os desequilíbrios ou forças desiguais que beneficiam um partido. No Brasil, o recente escândalo de corrupção envolvendo Petrobras mostra como as eleições podem ser livres e justas em seu regulamento interno, mas podem ser injustas se o financiamento dos partidos é completamente desigual, resultado de corrupção.
A democracia tem qualidade quando a liberdade é garantida para os seus cidadãos, incluindo a liberdade de expressão, liberdade de imprensa e liberdade de associação. Nesse sentido, os casos de violência contra as pessoas que não concordam com as opiniões expressas nas ruas não são aceitáveis.
Outras características não são aceitas por todos os estudiosos. Por exemplo, a qualidade de uma democracia está associada com a capacidade de resposta, ou a resposta de mandatos. Isso significaria que os políticos devem apresentar programas eleitorais claros, dando às pessoas o poder de influenciar os resultados antes de chegar ao poder. Após a eleição, em uma democracia de qualidade, eles seguiriam as ideias que foram a base da campanha.
Em uma democracia de qualidade, um presidente não deve ser afastado do cargo simplesmente porque parte da população está insatisfeita
Finalmente, uma característica importante da qualidade das democracias é a prestação de contas, quando diferentes agências têm o poder e a vontade de investigar os poderosos, enquanto eles estão no poder, o que mostra que eles não estão acima da lei. Na América Latina, os governantes pensam frequentemente, depois de serem eleitos, que eles têm poder absoluto para fazer o que quiserem. Em um de seus programas de rádio, o então presidente da Venezuela Hugo Chávez declarou: "Eu sou a lei, O Estado sou eu", replicando Louis XIV.
É muito cedo para dizer que a remoção da presidente Dilma Rousseff é viável. Em uma democracia de qualidade, um presidente não deve ser afastado do cargo simplesmente porque grande parte da população está insatisfeita. No entanto, em uma democracia de qualidade é possível investigar os crimes cometidos pelos mais altos representantes políticos da nação ou benefícios ilegais para seu governo. Não podemos aceitar a ideia de que "Eu sou a lei, eu sou o Estado."
No final das contas, o Estado de Direito é o elemento mais importante para julgar a qualidade da democracia brasileira. Aos verdadeiros democratas: agora é o momento de cuidar desse controle de qualidade.
Fernando Mello é jornalista e é aluno de mestrado na Universidade de Georgetown, em Washington. Em 2013, ganhou o Prêmio de Reportagem em Profundidade, da Sociedade Interamericana de Imprensa.
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