“Os pressupostos do impeachment de Dilma não estão presentes”
Presidente do Supremo durante o mensalão, Britto diz que a democracia brasileira está a plenos pulmões, por isso os protestos de domingo Para ele, haverá mais investigados pela Lava Jato
Carlos Ayres Britto sabe o que é julgar políticos corruptos. Ele foi presidente do Supremo Tribunal Federal em 2012, ano em que a Corte começou a julgar a ação penal 470, conhecida como o processo do mensalão. O resultado foi a condenação de 24 pessoas, entre políticos proeminentes – como o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu e o tesoureiro Delúbio Soares – e empresários.
Indicado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a mais alta corte do país em 2003, Britto se aposentou compulsoriamente no final de 2012, ao completar 70 anos de idade. Considerado um juiz liberal, no Supremo o magistrado votou favoravelmente à interrupção da gravidez de fetos anencéfalos e à união homoafetiva. Em conversa por telefone com o EL PAÍS, Britto falou sobre os protestos deste domingo, sobre a operação Lava Jato, que colocou o Congresso na berlinda, e sobre o Governo de Dilma Rousseff.
Pergunta. Que leitura o senhor faz dos protestos contra o Governo no domingo?
Resposta. A ida de tanta gente às ruas é expressão de cidadania. O cidadão chega à conclusão de que tem o direito e o dever de alertar o país para os riscos da política. Eu encaro com naturalidade isso: é salutar a ocupação das ruas, ainda mais em estado de ordem, sem violação da lei. O protesto vem em uma espécie de crista de onda da insatisfação com a nossa tradição política de corrupção. É fruto do descompasso entre as expectativas sociais de representação política autêntica e a efetividade desta representação. Estamos em um momento de maturidade política após 30 anos de democracia, e o que ocorreu foi a própria cidadania sem mediação de partidos ou políticos vocalizando uma agenda para o país.
P. A resposta do Governo foi, por meio do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e do ministro da Secretária Geral da Presidência, Miguel Rossetto, anunciar novamente medidas que já haviam sido ventiladas no passado. É suficiente para acalmar o manifestante que foi às ruas?
R. Em um segundo momento [após o protesto] as instituições entram em cena. Os partidos, os órgãos do Congresso Nacional, do Executivo, enfim, as instituições públicas, precisam se posicionar. Fora das instituições não há salvação. Quem tem uma resposta no sentido de valorizar efetivamente o movimento de rua, quem teve uma resposta mais sensível, mais compatível com esse diálogo entre Governo e sociedade civil, foi o Cardozo. Ele se pronunciou bem, valorizou o movimento, no plano conceitual. Agora é partir do conceitual para o plano real, na deflagração de políticas públicas e atitudes governamentais.
P. Apesar de não terem sido a maioria, muitos manifestantes pediam a intervenção militar...
R. É uma contradição pedir a intervenção militar. As Forças Armadas foram regradas pela Constituição em um artigo que se chama ‘Da defesa do Estado e das instituições democráticas’. Nossa democracia vem funcionando a plenos pulmões, tanto é que o povo está se manifestando na rua democraticamente. O Estado de Direito está sendo observado. Nossos militares, após 30 anos de democracia ininterrupta, já internalizaram que o papel das Forças Armadas é proteger a democracia, e não golpeá-la.
P. Ganha força em alguns setores da sociedade um discurso pelo impeachment da presidenta. Qual a sua leitura disso?
R. Neste momento os pressupostos do impeachment não estão presentes. Eles se dão por crime de responsabilidade. E a presidente, no atual mandato, até onde se sabe, não cometeu delito algum.
P. O ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco disse que repassou 300.000 dólares para a campanha dela em 2010...
R. O primeiro mandato dela é página virada para fins de impeachment. E no atual mandato ela não incorreu em nenhum dos crimes de responsabilidade a que a Constituição se refere. As denúncias do Barusco referentes a 2010 não se aplicam.
"Precisamos mudar radicalmente nosso modelo de financiamento de campanhas eleitorais"
P. Quais os próximos passos na Lava Jato?
R. Prevalece o dispositivo da Constituição que diz que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal. A fase atual é de investigação criminal, nesse momento não existem culpados. Ainda não há processo propriamente dito. Pode ser que pessoas que não estavam na lista [do procurador-geral da República, Rodrigo Janot] entrem no processo, e outras que foram citadas saiam. Se essas investigações do Ministério Público resultarem na coleta de dados que apontem indícios de delitos e da autoria destes crimes, ele formulará denúncia perante o STF. Se a denúncia vier a ser aceita pelo Supremo, quem era investigado se torna réu. E a investigação muda de nome, passa a ser processo penal. Aí o MP vai aprofundar as investigações e fazer diligências no sentido de melhor desvendar a trama criminosa, identificar réus e co-réus. E são essas provas que irão pautar um futuro julgamento do caso.
P. A Operação Lava Jato reforça a necessidade de um novo modelo de financiamento de campanha?
R. Isso [as denúncias de corrupção] comprova mais uma vez que precisamos mudar radicalmente nosso modelo de financiamento de campanhas eleitorais. Precisamos eliminar a possibilidade de empresas financiarem campanhas de partidos e candidatos. Isso é uma porta aberta para a corrupção: elas financiam para levar a parte delas. Dão uma parte para os políticos, [mas arrecadam dinheiro] graças à cobrança de sobrepreços nos contratos com a administração pública. Além disso, este modelo facilita muito a formação de consórcios e acordos espúrios, com loteamento de licitações e ajuste de preços entre as empresas. O financiamento privado abre as portas para a pior das alianças do ponto de vista ético e democrático: entre o poder político e o econômico.
P. O STF examina desde 2011 uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil contra o financiamento privado de campanhas. O ministro Gilmar Mendes pediu para examinar o texto e desde então o processo não andou...
R. O ministro pediu vista [exame da matéria julgada] porque logicamente não se sentiu habilitado a votar e quis examinar a matéria em seu gabinete. Prefiro não dar opinião sobre a suposta morosidade dele.
P. O senhor é ex-filiado do PT. Como o enxerga o atual momento do Governo de Dilma Rousseff?
R. Saí do Supremo com uma cabeça de juiz: quando me pedem para fazer análises políticas e ideológicas de um determinado governo eu não me sinto à vontade. O ideal seria que o PT e todos os partidos encarnassem a sua ideologia estatutária. Partido é uma parcela da opinião pública, e cada partido é estruturado sobre valores. E quando eles se desviam dessas finalidades, a população fica sem base ideológica.
P. O desfecho da Lava Jato deve demorar mais do que o do mensalão?
O ideal seria que o PT e todos os partidos encarnassem a sua ideologia estatutária
R. O mensalão já era uma denúncia penal [quando foi levado ao STF]. O MP já ofereceu diretamente a denúncia contra 40 pessoas, que foi aceita pelo Supremo. Em teoria [a conclusão da Lava Jato] demorará mais. Mas por outro lado, sabemos que o MP já está trabalhando há meses com uma força tarefa neste caso, não é possível precisar quão avançadas estão as investigações.
P. Quais as semelhanças entre a Lava Jato e o mensalão?
R. Ao que parece há crimes comuns: corrupção ativa, passiva, lavagem de dinheiro, peculato e evasão de divisas. Os crimes são muitos e entrelaçados. Além disso, tudo indica que a base de inspiração [dos delitos da Lava Jato] também foi política: o dinheiro era arrecadado para repasse não apenas no plano individual, mas para os partidos políticos. Se isso ficar provado vai haver uma identidade.
P. Os partidos vão alegar que era dinheiro para campanhas...
R. Claro que os partidos e políticos vão dizer que a ideia não era comprar ninguém, e sim para ajudar na campanha, para formar caixa nas estruturas. No mensalão ninguém negou que recebeu dinheiro. Agora a desculpa – e não digo isso no sentido pejorativo - era de caixa 2. O Brasil teima demasiadamente em insistir nessas práticas. À época do mensalão se dizia apenas que era dinheiro “não contabilizado”.
P. Se não fosse pelo caso do mensalão, teria havido a Lava Jato?
R. O julgamento da ação penal 470, popularmente chamada de mensalão, foi divisor de águas para mostrar que o Supremo pode levar um processo de grande envergadura, com muitos crimes e réus que estão no topo da pirâmide econômica e política, até o fim. O STF se mostrou capaz de contar uma história processual com começo meio e fim, e se posicionar com objetividade e tecnicidade. Mandou um recado para a nação de que o princípio republicano de que ninguém está acima da lei é para valer. Foi uma contratura na impunidade. Isso claro que anima a sociedade a acreditar nas suas instâncias judiciárias e na eficácia do direito penal. O que se dizia [no mensalão] é que o processo jamais seria julgado. Quando começou o julgamento, se dizia que ele não teria fim. Quando teve fim, dizia-se que ninguém seria condenado. E o resultado todos conhecem.
P. Uma onda antipetista ganhou força este ano. Isso pode pressionar o Supremo durante o processo?
R. Eu entendo que não. O STF já deu demonstrações de ser uma instituição madura. Tão sensata quanto serena. E não só o Supremo: outras instâncias têm mostrado que o Brasil já dispõe de instituições sólidas. Como a PF, o MP, o Judiciário como um todo e o Supremo em especial. Outra instância que deu mostras de amadurecimento e responsabilidade é a imprensa, que vem funcionando no Brasil como uma instituição dotada de liberdade. Não há democracia plena sem liberdade de imprensa plena.
P. É difícil condenar políticos corruptos?
R. Já não é tão difícil. Finalmente estamos coletivamente entendendo que fora das instituições não há salvação. E isso nos alenta muito. Fora da democracia só existem lideranças populistas, carismáticas, fisiológicas e o “compadrio” impera. As instituições formam o caráter coletivo. Se o assalto ao erário nos desalenta, nos anima saber que as instituições estão reagindo com técnica e coragem. A Constituição é o nosso mais valioso patrimônio coletivo, que completa agora 27 anos. Graças a ela temos uma democracia.
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